Elos Clube de Tavira

Agosto 06 2010

 

 

(continuação)

 

Já de volta a Brazzaville, onde reinava a tranquilidade, a seguir ao jantar no hotel, noite escura, decidi ir dar uma volta a pé. Depois de atravessar aquele pedaço de estrada ou caminho deserto em que me cruzei somente com meia dúzia de pessoas que me ignoraram, cheguei a um cruzamento onde havia uma espécie de boite, bar, clube. Povo. Aproximo-me, o que espanta aquela gente, talvez porque ali nunca tivesse entrado europeu algum, e pergunto se posso entrar e tomar uma cerveja.

 

- Bien sur! Porquois pas?

 

Lá dentro, muita conversa e muita dança. Dizer que a dança estava animada seria pleonasmo porque em África dança e música são a vida daquela gente. Em pé, no bar, sob o olhar curioso dos presentes, fui apreciando o ambiente e bebendo devagar a minha cerveja. Não tardou que me viessem perguntar o que eu fazia ali naquele lugar, parecendo perdido.

 

- Nada.

 

De facto tudo quanto fazia era passear um pouco. E ver. Ver o que se passava à minha volta. Acabei por dizer quem era, onde vivia, o que estava a fazer no Congo, como era a vida em Angola, e não tardou que tivesse razoável auditório à minha volta. Eu era, naquele meio, a avis rara. Conversámos, bebemos mais uma ou outra cerveja e quando achei que era hora de me ir deitar, a conta estava paga!

 

Esta era a África que eu conheci e amei.

 

Como a viagem ainda teve algumas peripécias mais, vamos seguir. Domingo, dez horas da manhã no aeroporto para apanhar o vôo para Pointe Noire.

 

- O vôo está atrasado, porque só sai depois que chegar o vôo de Paris.

- Quanto tempo de atraso?

 

Não sabiam. Comprei um livro qualquer e sentei-me ali, a ler e olhar para um pequeno avião de vôo à vela, que descia daqueles céus com uma calma impressionante. Sempre me atraiu o vôo à vela. E nunca fiz!

 

Encurtando a história, o vôo de Paris chegou com seis horas de atraso! Seis. Deu para ler o livro todo e ainda tive tempo de o oferecer à moça da companhia aérea a quem entretanto perguntei cem vezes se ainda faltava muito para sair!

 

Finalmente em Pointe Noire a estadia prevista era de dois dias. O suficiente para contactar os possíveis clientes, e a saída de regresso a Luanda prevista para quarta feira seguinte às nove e meia da manhã. O aeroporto era a cinco minutos do hotel e bastava lá estar com meia hora de antecedência porque normalmente não embarcava vivalma! No dia do regresso saí cedo do hotel para ir comprar alguma recordação para os filhos, já que em Pointe Noire os artigos de importação, sobretudo franceses, quase não pagavam direitos alfandegários e quando voltei bem antes das nove horas o gerente do hotel, aflito:

 

- Telefonaram do aeroporto a dizer que mudou o horário do vôo e vai sair uma hora mais cedo!

- Meu Deus! Está na hora.

 

Peguei nas malas e corri para um táxi. Quando este começa a andar, por cima de nós passou o avião! Perdido! Depois de ter esperado seis horas em Luanda e mais seis em Brazzaville, agora perdia o vôo, único semanal, porque adiantaram, sem me dar conhecimento, o horário! Fiquei com uma raiva...

 

Esperar uma semana em Pointe Noire, terra de mais ou menos nada... não era programa que me interessasse. Fui procurar saber como sair dali.

 

- Há sempre carros tanques de gasoil (óleo diesel) a sair daqui para Cabinda. Procure informar-se ali na Mobil.

 

Por sorte ia sair um, que se prontificou a levar-me, avisando que parecendo ser perto, em linha recta talvez menos de cinquenta quilómetros, até à fronteira de Cabinda, a estrada daí para a frente seguia pelo interior, pela floresta, e naquela época, Abril, de muita chuva, o tempo de viagem seria o que fosse! Antes um dia de viagem de camião do que uma semana em Pointe Noire.

 

Lá fomos. Dia seguinte, de manhã, bem cedo, já muitas horas de viagem no lombo, estrada esburacada e conforto de camião, a uns escassos trinta quilómetros de Lândana, a que houve pretensões de chamar Vila Guilherme Capelo em homenagem ao oficial da marinha portuguesa que assinou pelo rei de Portugal o Tratado de Simulambuco e que já se chamou Cacongo, as chuvas tinham cortado a passagem no meio da floresta.

 

 http://www.berggorilla.de/english/pic/cabinda-maiombe.jpg

 

 

Carros querendo seguir para o interior, atravessar o lago que se formara, e nós na nossa “margem” sem podermos passar para a costa.

 

Mas valeu a pena atravessar, mais uma vez a floresta do Maiombe! É uma beleza, imponente.

 

Agradeci muito a boleia que me deram, arregacei as calças, mala e sapatos na mão, atravessei o lamacento lago e convenci um outro camião a regressar a Lândana, onde apanhei um táxi que, voando, me levou a Cabinda. No último minuto, já o avião a fechar as portas, consegui entrar no vôo da DTA para casa. Foi uma odisseia e tanto.

 

Mas África tinha destas coisas (e muitas outras) que são páginas inesquecíveis da nossa história e muitas delas, apesar da idade, gostaria de repetir.

 

Francisco Gomes de Amorim

 

Do livro “Loisas da Arca do Velho”, inédito, 2001

publicado por Henrique Salles da Fonseca às 10:03
Tags:

Julho 21 2010

 

 

 

Foto: livreto África Central- Ruanda (Ir. Beatriz Manna)

 

 

Numa das minhas costumeiras visitas à Betânia, Casa das Irmãs Dominicanas de Uberaba, encontrei Irmã Beatriz Manna que sabendo da minha curiosidade sobre a África, continente agora em voga devido aos jogos da Copa do Mundo, falou-me sobre a sua experiência em Ruanda (território 320 vezes menor que o do Brasil) quando lá esteve durante quatro anos (1990-1994) em missão de ajuda, de educação e desenvolvimento da juventude ruandesa.

 

Em um opúsculo intitulado África Central – Ruanda, Ir. Beatriz registrou suas impressões sobre a terra considerada o berço da humanidade. Conta ela que os primeiros meses foram de adaptação e reconhecimento da realidade local em Gitarama, Kigali, Byumba, Burundi, enquanto as freiras aguardavam a reforma da casa (de belgas) onde as Dominicanas iriam ficar, em Nyanawemana.

 

Em 1990, num dos campus de refugiados burundienses onde havia 1084 pessoas, a maioria crianças e mulheres, as irmãs ficaram por um tempo para dar assistência. Alojados em barracas, recebendo porções alimentares racionadas, vivendo em permanente medo de serem mortos, os refugiados viviam em condições precárias. Doença do sono, malária, Kwaskiokor, AIDS dizimavam gente. Lá a Ir. Zeny Vaz de Sousa contraiu malária e sucumbiu à doença. Quando veio a guerra e a matança entre eles (aproximadamente 800.000 mil mortos), entidades como a Croix Rouge International, Medicins du Monde, Caritas International e missionários de todo o mundo se juntaram para tentar diminuir o sofrimento dos desamparados sobreviventes. Produziam refeições, vestimentas, actividades para ocupar as pessoas, davam cuidados médicos-assistenciais.

 

A língua original de Ruanda é o Kinyarwuanda, mas fala-se francês e inglês nas comunidades estrangeiras. País de maioria católica, as missas são rezadas em francês. Republica desde 1960, apesar das lutas pelo poder entre as etnias hutus e tutsis, Kygali, a capital, cresce desordenadamente e com muitas doenças. Naqueles anos de 1990/1994, a maior parte da população andava descalça e maltrapilha. Nas comunidades mais pobres, onde não havia luz eléctrica e água encanada, o único automóvel era o do Burgo Mestre (espécie de Prefeito). Apesar de tantas desditas, o povo gostava de cantar e dançar. As crianças, não acostumadas a ver gente de pele clara, ficavam assustadas e choravam de medo quando viam pessoas brancas e de olhos azuis. Fato que me recordou a sensação de espanto que tive na infância, quando vi pela primeira vez em 1955 um homem negro na Praça do Rossio, em Lisboa. As meias e os óculos que os missionários portavam eram vistos com curiosidade pela criançada. A Kombi era o táxi daquele tempo. As pessoas entravam e se apertavam para caber mais um. Não raras as vezes, a viagem se prolongava quando era interrompida por paradas, com saídas e entradas, e incidentes, como pneus furados. Mesmo mal acomodados, ninguém reclamava.

 

O salário correspondia a míseros 40 dólares (1990). Em Kigali, apesar de tudo, podia-se ver construções bonitas, como o Mosteiro dos Beneditinos, construído pelos belgas.

 

Em Nynawemana não havia correio. A correspondência era depositada na caixa-postal, na paróquia ou no mural da Prefeitura. A base de alimentação da população era a batata-doce, banana, sorgo, repolho, arroz, tomate, feijão, amendoim. O milho verde e as ervilhas eram mais raras e eram dadas até como presentes em casamentos. A água vinha de cisternas.

 

A população, extremamente pobre, tinha a ideia que todo estrangeiro era rico. As pessoas estavam sempre à espera de ajuda de fora, o que nem sempre acontecia, pela corrupção que existia entre o funcionalismo.

 

Culturalmente, como sinal de fertilidade, eram as mulheres que trabalhavam a terra, mesmo com os filhos às costas. Durante a guerra os adversários políticos eram condenadas à morte, sem defesa. Em geral as famílias eram grandes. As casas mais abastadas tinham fogão a gás, geladeira a querosene, água da fonte, colocada em depósitos e tonéis. Em Nynawemana havia um posto de saúde, com um médico, que não funcionava direito pela falta de água e dinheiro para adquirir remédios. Os recursos financeiros que recebiam de fora eram desviados para comprar armas. As notícias chegavam à casa das freirinhas pelo rádio de pilha e pelas cartas.

 

As escolas eram tão pobres que só tinham a lousa. Os alunos não possuíam material e vestiam roupas sujas, por falta de outras. Aprendiam tudo de cor, com uma facilidade espantosa. A história e a cultura das tribos eram passadas oralmente pelos mais velhos, em reuniões familiares envolta de fogueiras.

 

Quando colonizados pelos alemães, antes da segunda grande guerra mundial, aprenderam com eles a escrita para sua língua. As freiras e professores usavam a lousa e cartazes para ensinar. Os bancos eram improvisados com troncos de árvores. Não havia mesas. O canto fazia parte das aulas e era sempre muito apreciado. Mesmo nos Seminários existia uma grande e profunda rivalidade (incutida pelos interesses estrangeiros) entre os Hutus e os Tutsis, as duas etnias dominantes em Ruanda.

 

Ainda há muitos feriados, falta de comida, muitos roubos.

 

Nas festas de casamento enfeitam a porta da igreja e o local da recepção com folhas de bananeira. O noivo oferece ao pai da noiva uma vaca ou uma cabra de acordo com suas posses. Aos convidados oferecem cerveja de sorgo ou de banana. As mulheres levam balaios cheios de cebolas, batatas doce, ovos para presente. Portam lindos "pane", espécie de saia longa, e as mães trazem à cabeça uma espécie de diadema. A cerveja é colocada num grande pote com 8 a 12 canudos longos por onde os convidados tomam educadamente a cerveja, após serem chamados. Tudo é feito de maneira ordeira. As festas sempre começam com atraso e demoram para acabar.

 

Disputas pessoais terminam, não poucas vezes, em envenenamentos. Já a rivalidade entre as etnias e o regionalismo ( os do norte não aceitam os do sul e vice-versa) levam a lutas que trazem o povo em constante deplacée , situação que impede a estabilidade e a produtividade.

 

Os velórios e enterros são feitos no quintal. O corpo é enrolado em lençol e colocado num caixão muito tosco. Após o enterro se reúnem para discursos sobre o morto e para beber.

 

Em Abril de 1994 as irmãs deixaram o país, fugidas dos massacres e contendas. Os soldados cercaram a casa das dominicanas e depois de matar alguns missionários na vila disseram às freiras:

 

- Ton pays demande que vous rentrez.

 

E assim elas abandonaram Ruanda pela fronteira com Uganda. No Kenya pegaram um avião para Bruxelas. De lá, por trem, chegaram a Paris. Poucos dias depois já estavam de volta ao Brasil.

 

 Maria Eduarda Fagundes

 

Uberaba, 14/06/10

 

Dados e referências: Livreto da Irmã Beatriz Manna – África Central, Ruanda; Wikipédia

publicado por Henrique Salles da Fonseca às 18:06
Tags:

mais sobre mim
Abril 2011
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
14
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30


pesquisar
 
subscrever feeds
blogs SAPO