Fernando Aires
MEMÓRIAS DA CIDADE CERCADA
O TERRAMOTO
Quem ia por ali acima, a caminho dos matos, a buscar queiroga para o lume e zimbro para o chão dos casebres, tinha o costume de parar um momento naquele lugar, a escutar, em silêncio, o resfolegar da ribeira, e a encomendar-se à santa que a lenda perfumara de ingenuidades e certezas, estabelecendo, de há muito, ter sido ali o lugar de seu nascimento e morte.
Antigas tradições faziam o relato daquele caso, sempre contado não exactamente como da última vez, mas sempre inspirado de compaixão e respeito.
A última versão dizia que em tempos do grande capitão, morava na Vila uma mulher muito velha, tão velha, que nas seroadas de Inverno, vinha gente de muito longe juntar-se aos vizinhos, para ouvir contar coisas do tempo em que, por aquelas partes, a missa era ainda rezada sobre um tosco altar de pedra, abrigado das chuvas apenas por um telheiro de juncos.
A velha habitava, sozinha, a casa mais remota do lugar, baixinha, de porta e janela. Casa de pobre, já se vê. Os montes por ali acima na frescura da hortelã e do trevo. O arvoredo das encostas a mudar de cor aos primeiros frios de Novembro.
Por essa data, alpardo, já a velha mulher tinha a levedar, ao calor do borralho, o pão benzido: " São Mamede te levede e São Vicente te acrescente ".
Prevenia-se, também, de óleo de peixe para a candeia, de lenha para o lume, e de mel silvestre que guardava em covilhetes de madeira e escondia dos ratos.
À medida que o Inverno avançava, as aves do mar voavam juntas para o sul, procurando guarida – os seus grasnidos alarmando de ecos os precipícios da costa.
Então a casa, no chão crestado do vento, com as árvores assim nuas, mais alvejava na raiz dos montes, enquanto a velha mulher ia cumprindo a oração da noite, para que o coração se mantivesse límpido durante o sono.
Já ia a lua na sétima volta, "não havendo sinais do céu nem da terra, sem fazer bafo de vento que então era levante", como diz o cronista, veio aquele estremeção tamanho, como um soluço de gigante – a casa num tremor, a estalar nas juntas, abalada até aos alicerces. O chão a abrir-se, os montes como cavalos à desfilada, por ali abaixo, semeando de pedras e lodo muitos lugares, deixando tudo raso e deserto, sem mostra de Vila com seus templos, seus solares, suas casas de comércio e casebres de pobre.
Toda esta desgraça, acontecida em tão breve espaço, serviu, dali por diante, a clérigos e a moralistas, para demonstrar aos povos a justiça e o poder infinito de Deus.
Daquela vez, o contador era homem de respeito, considerado digno de crédito, famoso de uma ponta à outra da Ilha por saber tanger os sentimentos no íntimo das pessoas, com sua eloquência e força de olhar e de gestos. De sorte que os ranchos que se punham a escutar, ouviam perfeitamente estarrecidos, os gritos das gentes em fuga, os gemidos dos moribundos cada vez mais desesperados e o uivo dos cães na partilha dos mortos. Assim se avaliava melhor como o rolar dos montes e o lume no mar tinham enchido de terror e espanto a velha mulher, ali sozinha, perdida: Senhor, misericórdia! Senhor, misericórdia! Minha Nossa Senhora! – a mulher tolhida no meio da casa, as mãos no peito. Tolhida.
Mas a casa não caiu. Nem o teto, nem as paredes caíram. Nem o lume brotado do mar chegou até ali. Ao lado do mundo maior, convulsionado até à orla do horizonte, aquela casa menor, situada na raiz do monte, sobrevivera como a luz que toma conta da madrugada.
Foi milagre, assegurava o narrador, por a velha mulher ser piedosa e boa e ter dito o nome da Senhora – e o povo comovido, dando graças, sentindo a espessura do mistério e o bater, compassado, das asas dos anjos, na palidez do crepúsculo.
E o narrador continuava: Tudo isto durou o espaço de um credo, se tanto. De novo, tudo ficou quieto – embora, para quem estivesse atento, não passasse despercebido o estertor profundo e a respiração cansada da terra revolvida.
Então a velha deitou-se. E depois de muito rezar, de muito se persignar, adormeceu – o rosário entalado na mão. O nome da Senhora na boca. Quando acordou, fez o costume: dirigiu-se à porta da cozinha, abriu o postigo e espreitou para fora. Mas estranhou: não havia dia. Nem galo que cantasse. Só silêncio. Escuridão. Foi pela candeia, às apalpadelas. Trouxe-a acesa. Pousou-a. Aconchegou mais o xaile e abriu a janela. Debruçou-se: a mesma escuridão. Não se via nada, coisa nenhuma. A noite lá fora – de breu. Voltou à enxerga. Deitou-se calada, sozinha, a ver quando bulia a manhã. Mas nada bulia. Nem os cães que costumam ladrar às estrelas. Nem os galos. Nada que anunciasse a madrugada. Era cedo, decerto. O sol não nascera ainda. Sabia, de resto, que na Ilha de nevoeiros e prolongadas sombras, às vezes custa a ser dia. Esperou.
Houve ocasiões em que o telhado estalou, como que constrangido pelo peso do céu – e a mulher ali calada e sozinha. Tolhida. A fazer por se lembrar de suas culpas mortais. A encomendar-se a Deus. Nisto a candeia estrebuchou, fez um estalido, assim como de folhas secas pisadas. Ainda alteou a chama duas vezes. Por fim, apagou-se, deixando um cheiro forte e acre. O esperar inútil de que se acendesse de novo.
Um silêncio enorme (imagine quem puder) pesou ainda mais nas traves da casa que rangeram com um silvo de serpente. Sobre o peito da mulher, foi como se o coveiro assentasse, de vez, a laje da sepultura.
Muitos anos passaram sobre a noite em que os montes rolaram, e a terra entrou pelo mar adentro. Um dia vieram os homens àquele lugar. Traziam pás e picaretas. Os matos subiam por ali acima cobertos, de novo, de queiroga e de zimbro. E onde dantes emergia da terra um amontoado pedregoso e monótono, ouvia-se, agora, o arfar de uma ribeira. Os homens, hesitaram um momento, entreolharam-se, perguntaram: Será aqui? O capataz observou atentamente à volta, confirmou a altura do sol e a direcção das nuvens e respondeu: É aqui. Então todos se puseram a arrancar os tamujos e os fetos do chão endurecido. Roçaram as silvas. Cortaram as árvores da grossura de baleias. Depois começaram a abrir a terra. Alargaram, aprofundaram o buraco. Afastaram as pedras e os troncos esburgados como ossadas acumuladas num túmulo. Cavaram mais. E ainda mais. Mais ainda. Veio a tarde. Veio a noite e não paravam de cavar.
Noite alta, os alviões deram com uma coisa alvacenta, como um lótus a emergir por entre despojos. Os homens redobraram de esforços, os alviões a encherem a madrugada do ruído dos ferros.
Sem uma palavra, o capataz desceu ao fundo do poço e ficou a olhar. Então começou a aparecer uma coisa, inexplicável, vagarosa, por entre o lodo e as rochas, quase irreal, quase assustadora no seu mutismo, parecendo um coral arremessado pelas ondas ao fundo daquele poço. E, sendo já dia claro, romperam a tirar os últimos entulhos. Mas, de súbito, suspenderam o trabalho – os braços caídos, os olhos imóveis.
O capataz perguntou: O que é? Os homens não responderam. Começaram a mover-se devagar. Curvaram-se a limpar do bolor o que quer que segregava o hálito das coisas intangíveis. Afirmaram-se melhor e um vento veio das alturas afastar as névoas à flor da terra: inteiro e sozinho, o corpo da velha mulher jazia no desamor de tantos anos passados. Inteiro. Nas mãos, o rosário de repente tão nítido à luz que vinha de cima. A boca ainda no jeito de dizer o nome da Senhora.
A notícia correu.
Veio o povo com muitos gestos e o seu burburinho cheio de imaginações exaltadas. Veio o padre com seu aparato de opas e turíbulos, a impor as mãos e a fazer funcionar o moinho das orações já gastas que chegam a comprometer a reputação de Deus. Veio o juiz da terra, circunspecto e rigoroso, trazendo consigo os seus subalternos e os pergaminhos do seu ofício – o que levou o povo a afastar-se com respeito.
Houve um espaço em que se ouviu o vento nas urzes e o marulhar da ribeira. Depois, estalaram foguetes e soaram instrumentos de música. A multidão agitava-se, empurrava-se como um rebanho impaciente, para ir ver de perto o achado milagroso, de onde se desprendia um intenso perfume a maçãs acabadas de colher.
Completamente alheio a tão grande arruído, o corpo da mulher jazia ali – incorrupto. Um brilho persistente no rosário, a boca no jeito de quem quer dizer o nome da Senhora.
© Fernando Aires, Memórias da Cidade Cercada, Lisboa, Edições Salamandra, 1995, pp. 37-44.
FERNANDO AIRES nasceu em Ponta Delgada (Açores) a 18 de Fevereiro de 1928 e ali faleceu a 9 de Novembro 2010. Depois da Escola Primária, frequentou o Liceu Antero de Quental na mesma cidade entre 1940-1947, onde completou o Curso Complementar de Letras. Matriculado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, licenciou-se em Ciências Histórico- Filosóficas. Professor efectivo no Liceu Antero de Quental, cumulativamente orientou estágios pedagógicos durante vários anos e leccionou a cadeira de Psicopedagogia na Escola do Magistério Primário de Ponta Delgada. Com a fundação da Universidade dos Açores em 1974, ingressou nesta instituição. Aposentou-se na situação de assistente-convidado da Universidade dos Açores, cargo que exerceu de 1975 a 1994.
Pertenceu ao grupo que, nos anos 40, fundou o Círculo Cultural Antero de Quental, destinado a introduzir o Modernismo nos Açores, com Eduíno de Jesus, Soares de Albergaria, Eduardo Vasconcelos Moniz, Carlos Wallenstein e outros. Colaborador assíduo da imprensa local e regional, bem como de revistas conhecidas regionalmente como a revista "Atlântica e Nova Renascença".
Fernando Aires revela-se um escritor com um estilo firme e excepcional, com uma escrita elegante que nos cativa e fascina. Este conjunto de características viria a desenvolver-se num género literário onde predomina o memorialismo, que é caracterizado por abarcar relatos autobiográficos, que se manifestam na vertente diarística que o autor inaugura na produção literária açoriana. De 1978 a 1989, fez parte da Direcção do Instituto Cultural de Ponta Delgada. Está representado na Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, onde colaborou desde 1993.
Leitor de clássicos e modernos, viria a publicar um diário em 5 volumes que intitulou de “Era Uma Vez o Tempo” que obteve largo reconhecimento junto dos ilhéus e de alguma crítica especializada em Portugal e nos E.U.A.
Na ficção publicou dois volumes de Contos “Histórias do Entardecer “ (1988) que ganhou o primeiro prémio do Concurso Literário dos Açores/88. Publicou ainda “Memórias da cidade cercada “ (1995) e a novela “A Ilha do nunca mais” (2000) que confirmaram as suas qualidades de prosador.
Fernando Aires, professor, escritor, poeta, ensaísta, cronista em muitos jornais, marcou várias gerações ao leccionar História e Filosofia, incentivando os jovens alunos a irem muito além dos compêndios oficiais.
Obras Ensaísticas
• Faria e Maria e Antero (ensaio, Angra do Heroísmo, 1961)
• José do Canto Vivo (separata da revista "Arquipélago", Universidade dos Açores, Ponta Delgada, série "Ciências Humanas", n.º 3, 1981)
• José do Canto - Subsídios para a História Micaelense (1820-1898) (Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1982)
• Afonso Chaves (separata da revista "Açoriana", Ponta Delgada, 1982)
• Alice Moderno - A Mulher e a Obra (separata da revista "Insulana", vol. XLI, 1985)
• Delinquência e Emigração em São Miguel na Primeira Metade do séc. XIX (separata da revista "Insulana", Ponta Delgada, 1988) Contos
• Histórias do Entardecer (Secretaria Regional da Educação e Cultura, col. Gaivota, 1988. Ganhou o Concurso Literário Açores/88)
• Memórias da Cidade Cercada (Lisboa, Edições Salamandra, 1995). Obras Autobiográficas
• Era uma Vez o Tempo
• Diário I, Ponta Delgada, 1988;
• Diário II, Ponta Delgada, 1991;
• Diário III, Lisboa, Edições Salamandra, 1993;
• Diário IV, Lisboa, Edições Salamandra, 1997;
• Diário V, Lisboa, Edições Salamandra, 1999),
• A Ilha de Nunca Mais (ficção, Lisboa, Edições Salamandra, 2000).