Elos Clube de Tavira

Fevereiro 01 2011

 TRASFEGA - Cristóvão de Aguiar

 

TRASFEGA

 

Uma noite, altas horas, acordou, o coração desenfreado cavalgando-lhe na caixa do peito. Apercebeu-se de um desusado movimento entrecortado de soluços e rezas exactamente no andar de cima. O senhor Varandas, alentejano de meia-idade e uma perna mais curta, acabava de exalar o último suspiro. Confortado com todos os sacramentos da Santa Madre Igreja e rodeado da solicitude e do carinho da mulher e da filha.

 

Sempre tiveste um medo pânico à morte. Dir-se-ia que, nesse pavor, existe uma fasciculada raiz religiosa. É natural, foste criado nas fraldas do catolicismo, que dramatiza, com pompa e liturgia, o fim da vida terrena. A notícia da morte de alguém conhecido põe-te arrepiado e à beira do desnorte. Pensas demasiado no teu próprio desaparecimento e vais morrendo aos poucos com os que vão desistindo de se existir... Se conheces a doença que vitimou esse teu conhecido, então tarda pouco em lhe assimilares todos os sintomas. Sentes tonturas, vómitos, ficas convencido de que a tua hora chegou. O medo de morrer é uma constante da tua vida, ou desvida. És amiúde assaltado, nos sonhos, por imagens fúnebres.

 

“Amanhã vai a enterrar a filha mais nova do Ti Baldaia; tinha dezoito anos e a febre tifóide comeu-a por dentro; vamos ver o coveiro abrir a cova?; medricas de merda; se passasses em frente do cemitério, à noite, como eu, ao vir todos os dias da Canada Grande, dava-te um fanico; até se vêem, ao alpardusco, as luzinhas das almas dançando nos covais...”, imagens de sepulturas escancaradas prontas para te receberem em seu aconchego...

 

Na noite em que o senhor Varandas morreu, não conseguiu voltar a adormecer. Sentia a morte perto de mais. O resto da noite, passou-a a imaginar que escutava os cangalheiros tirando as medidas ao cadáver, a lavarem-no, a barbearem-no. Ao principiarem a armar a essa, não resistiu. Escapou-se do quarto de cama e foi para a sala recostar-se no sofá.

 

Aí, já não ouvias, ou julgavas que não, os funcionários da morte, e a tua imaginação atingiu o rubro. Acendeste a luz. A escuridão traz-te incómodas visões. O espelho em frente passou a reflectir a luz que te batia nos olhos.

 

“Estamos desgraçados, mulher; parti o espelho redondo quando estava fazendo a barba, e isso é mau agoiro; tenho azar quando se parte um espelho; lembras-te de quando rebentou, numa noite de vento, o cordel do espelho grande do quarto de sala?; três dias depois, morreu o Ti Luís Pontes e, nesse mesmo dia, caiu o sino da torre e ia matando minhas primas acabadinhas de entrar no guarda-vento; o que será que nos vai agora acontecer?”, e tiveste medo...

 

Desviou a cara do espelho, procurou esquecê-lo. De onde em onde, passava pelas brasas, mas, logo de seguida, dava um salto do sofá-cama: sentia o cadáver do senhor Varandas, deitado, rígido e gelado, à sua ilharga.

 

Assim permaneceu uns tempos, o defunto acompanhando-o para onde quer que fosse...

 

Passados os dias de nojo, houve mudanças lá em cima. Veio a Mariana ocupar o quarto dos pais. Por cima do teu. A vida florindo a ausência. Ao princípio, pareceram-te as noites menos longas e cheias de expectativa.

 

Chegaste a escrever um verso, “Decorei a floresta e o mar do teu corpo...”, de um poema que nunca terminaste... Depressa te desencantaste, “Deixas sempre tudo por acabar; entregas-te com entusiasmo às coisas, mas és fraco e volúvel...”, o costume...

 

 Cristóvão de Aguiar (*)

 

In Trasfega, casos e contos – Publicações D. Quixote, 2002

 

(*)http://www.google.pt/imgres?imgurl=https://1.bp.blogspot.com/_6nTode7xmxs/TS34zl_M5qI/AAAAAAAAGy4/CX1Q7jV35i0/S240/Crist%2525C3%2525B3v%2525C3%2525A3o%252Bde%252BAguiar%252B%252528foto%252Bde%252BLu%2525C3%2525ADs%252BMonte%252529%252B2006.jpg&imgrefurl=http://asilhasencantadas.blogspot.com/2007/05/os-nomes-das-ilhas.html&usg=__nF-87yjh4rYlvH2e66tdAAKdIzk=&h=220&w=178&sz=12&hl=pt-pt&start=0&zoom=1&tbnid=AZGz9YP2mCuouM:&tbnh=127&tbnw=107&ei=9PVHTea4BZKDswaM0tDwAg&prev=/images%3Fq%3DCrist%25C3%25B3v%25C3%25A3o%252Bde%252BAguiar%26um%3D1%26hl%3Dpt-pt%26sa%3DN%26biw%3D1021%26bih%3D681%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=rc&dur=296&oei=9PVHTea4BZKDswaM0tDwAg&esq=1&page=1&ndsp=25&ved=1t:429,r:0,s:0&tx=67&ty=40

publicado por Henrique Salles da Fonseca às 11:47

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