TRASFEGA
Uma noite, altas horas, acordou, o coração desenfreado cavalgando-lhe na caixa do peito. Apercebeu-se de um desusado movimento entrecortado de soluços e rezas exactamente no andar de cima. O senhor Varandas, alentejano de meia-idade e uma perna mais curta, acabava de exalar o último suspiro. Confortado com todos os sacramentos da Santa Madre Igreja e rodeado da solicitude e do carinho da mulher e da filha.
Sempre tiveste um medo pânico à morte. Dir-se-ia que, nesse pavor, existe uma fasciculada raiz religiosa. É natural, foste criado nas fraldas do catolicismo, que dramatiza, com pompa e liturgia, o fim da vida terrena. A notícia da morte de alguém conhecido põe-te arrepiado e à beira do desnorte. Pensas demasiado no teu próprio desaparecimento e vais morrendo aos poucos com os que vão desistindo de se existir... Se conheces a doença que vitimou esse teu conhecido, então tarda pouco em lhe assimilares todos os sintomas. Sentes tonturas, vómitos, ficas convencido de que a tua hora chegou. O medo de morrer é uma constante da tua vida, ou desvida. És amiúde assaltado, nos sonhos, por imagens fúnebres.
“Amanhã vai a enterrar a filha mais nova do Ti Baldaia; tinha dezoito anos e a febre tifóide comeu-a por dentro; vamos ver o coveiro abrir a cova?; medricas de merda; se passasses em frente do cemitério, à noite, como eu, ao vir todos os dias da Canada Grande, dava-te um fanico; até se vêem, ao alpardusco, as luzinhas das almas dançando nos covais...”, imagens de sepulturas escancaradas prontas para te receberem em seu aconchego...
Na noite em que o senhor Varandas morreu, não conseguiu voltar a adormecer. Sentia a morte perto de mais. O resto da noite, passou-a a imaginar que escutava os cangalheiros tirando as medidas ao cadáver, a lavarem-no, a barbearem-no. Ao principiarem a armar a essa, não resistiu. Escapou-se do quarto de cama e foi para a sala recostar-se no sofá.
Aí, já não ouvias, ou julgavas que não, os funcionários da morte, e a tua imaginação atingiu o rubro. Acendeste a luz. A escuridão traz-te incómodas visões. O espelho em frente passou a reflectir a luz que te batia nos olhos.
“Estamos desgraçados, mulher; parti o espelho redondo quando estava fazendo a barba, e isso é mau agoiro; tenho azar quando se parte um espelho; lembras-te de quando rebentou, numa noite de vento, o cordel do espelho grande do quarto de sala?; três dias depois, morreu o Ti Luís Pontes e, nesse mesmo dia, caiu o sino da torre e ia matando minhas primas acabadinhas de entrar no guarda-vento; o que será que nos vai agora acontecer?”, e tiveste medo...
Desviou a cara do espelho, procurou esquecê-lo. De onde em onde, passava pelas brasas, mas, logo de seguida, dava um salto do sofá-cama: sentia o cadáver do senhor Varandas, deitado, rígido e gelado, à sua ilharga.
Assim permaneceu uns tempos, o defunto acompanhando-o para onde quer que fosse...
Passados os dias de nojo, houve mudanças lá em cima. Veio a Mariana ocupar o quarto dos pais. Por cima do teu. A vida florindo a ausência. Ao princípio, pareceram-te as noites menos longas e cheias de expectativa.
Chegaste a escrever um verso, “Decorei a floresta e o mar do teu corpo...”, de um poema que nunca terminaste... Depressa te desencantaste, “Deixas sempre tudo por acabar; entregas-te com entusiasmo às coisas, mas és fraco e volúvel...”, o costume...
Cristóvão de Aguiar (*)
In Trasfega, casos e contos – Publicações D. Quixote, 2002