FAIA-DA-TERRA
Pela Canada Nova entra um nevoeiro pegajoso e de madorra. Uma barra pesada que esconde o mar e faz da araucária da Quinta Velha um fantasma que tolhe os ânimos.
Sancha, a mais velha, acabara de depor as folhas de jarroca na amassaria. Era sexta-feira e a mãe amassava o crescente com a farinha de milho. No forno estalavam a rapa, o eucalipto e o loiro: um fumo hierático de odores inchava pela casa. Lavou depois as folhas de botar pão e veio sentar-se ao pé dos meus socos de milho […] Arrumou as galochas no sobrado, acomodou os pés nas minhas pernas e picou o linho de azul.
- Já não és o meu franganito de vintém… Já estás um galo da Madeira que qualquer dia não queres saber mais da Chinchinha!
Afaguei-lhe um piso, um arranhão somenos, abaixo do joelho. Sancha e eu pressentimos a ultrapassagem do mimo no gesto que era, na origem, carinho, mas que se prolongava para além do imaculado de que deveria revestir-se.
Assarampantou-nos a voz da Senhora Mercês, reinosa na cozinha, por via da lenha verde que só se babava:
- Isto está mesmo um tempo de abalos de terra! T’arrenego, excomungado! Sancha, Mafalda, Teresa! Ah vocês! Venham cá à reza dos abalos! […]
Trás-de-casa havia uma goiabeira, mandarinas, uma fona-de- porca, dálias, bananas-de-água de capacete amarelo, salsa, funcho, duas figueiras, malmequeres, jambes, muita urtiga, groselha, araçaleiros e uma faia-da-terra.
Há coisas do arco-da-velha. Aquela faia-da-terra, para Teresa, a mais moça, era a modos que um templo: ficava horas desfiadas, nos galhos empoleirada, rodando nos dedos as bagas amarelas, os cabelos adornados das flores brancas e cheirosas, numa liturgia primaveril e pagã que alentava a vida e animava a terra.
E há a música.
Pois ele é lá possível que pense Teresa e a faia sem música!… Não albornei no ouvido nenhuma melodia, não. O silêncio marcava-as, ambas e duas. Mas talvez o vento, as folhas que se mexiam, sei lá, os pios do melro-preto ou do tintilhão… […]
No dia de toiros da Terra do Pão, manhã cedo, Teresa e mais a mãe foram para a Mafalda que agora carregava uma barriga do tamanho de um balseiro. […] Horas antes do primeiro bombão, contudo, Teresa foi tratando de arranjar assento para o arraial. E estava bem bonito. Poderio de povo de toda a ilha, tourada de fama, coisa rija, […] Há, porém, um carro que quer passar. Apita-me naquela buzina, mas as vozes dos homens abafam-na. Parou em frente do balcão onde está Teresa. […] Lá dentro, um rapaz muito loiro, de cabelo à escovinha que parecia acabado de sair da tenda do Mestre Lêndea, os olhos azuis, um sorriso largo e desassossegado. […] Teresa tinha dado no goto ao americano. Ei-lo que vinha, come back para trás, a pé. Pelo caminho, aprendeu da arte do queres-me querer com os rapazes da ilha […] Até à hora do foguete de aviso, os braços do vendedor estendiam, na ponta do bordão de carreto, os candins, as favas, o milho torrado doce, os pinotes, as pevides, as gamas, os rebuçados de alfenim, os chocolates da Base, que Teresa, embaçada, (envergonhada? vaidosa?) distribuiu por quem lá estava, à laia de bodo. […] E os olhos (ainda os olhos) pretos de Teresa, pretos, pretos, da cor que amora tem, cederam (imolaram-se, escrevo) ao azul estrangeiro e aventuroso. Hoje, um envelope de risquinhas vermelhas e azuis trouxe-me novas do novo mundo. Chegou by air mail e diz-me, por fora, que vem da parte de MRS. TERESA PIEL. Por dentro, dá-me por notícia que lhe nasceu o segundo filho, Michael, que estava para ser Robert, Bob ou Bobby, como lá se diz, mas que bóbi é nome de cão. Que Jorge e Sancha já vão em três tramocinhos e que Mafalda e Carlos, nada de muita atramoçadura, se ficaram pela menina que na ilha brotou. […] Que trabalham que se pingam, que estão todos muito bem e mortos de saudades. E pede-me que, da próxima, lhe mande umas florzinhas de faia. […] Essa menina é Teresa, a autora da carta que ficou dita. Foi para a América, como já sabem. Pois bem: a faia-da-terra secou!
Secou sem dar satisfações à chuva, à terra, ao vento, às outras árvores. Dois meses depois da partida do avião da PanAmérica, de um dia para o outro deu em mirrar, em ficar castanha. Nada há a fazer senão pô-la a cozer pão. De outra faia colhi a flor, […]”
(“Faia-da-terra”, Nas Escadas do Império. Coimbra, Ficção – Centelha, 1978, pp. 11-12-16-21-22-23-24-26-27).
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Vasco Pereira da Costa nasceu em Angra do Heroísmo, no ano de 1948. Professor do ensino secundário durante vários anos, esteve ligado à formação de professores, exercendo funções docentes na Escola Superior de Educação de Coimbra.
Desempenhou funções de director do Departamento de Cultura, Turismo e Espaços Verdes da Câmara Municipal de Coimbra.
Tem proferido conferências sobre temas literários e pedagógicos em Portugal e nos EUA, Venezuela, África do Sul, Senegal, Espanha, França, Inglaterra, Bélgica, Holanda e Itália.
Integrou o grupo de trabalho "Culture sans frontières" da DG X da União Europeia para o estudo do turismo cultural nas cidades europeias de média dimensão. Em representação da A. P. E. tem integrado diversos júris de prémios literários, designadamente, o Grande Prémio A. P. E. de poesia. Foi representante de Portugal no programa FAULT LINES da True and Reconciliation Comission da República da África do Sul.
Tem trabalhado para a rádio e para a televisão em programas de índole literária e cultural e exercido, nesta área, funções de consultor para programas infantis. Foi director regional da cultura dos Açores (2003-2008) e antes disso foi cônsul honorário de França em Coimbra. Integra o Conselho Directivo da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento (FLAD)