Praia do Almoxarife
Depois de transcorridos 55 anos, tudo me vem à memória de uma forma indefinida, mais focada nos sentidos que visualizada. Mas da minha rica infância, vivida nas ilhas do Faial e do Pico, o que mais me marcou foram as visões do mar, dos caminhos, o carinho de uma grande família.
Na quinta da minha avó materna, as canadas pedregosas, bordadas por canteiros de floridos morangueiros, ofereciam vermelhos e suculentos frutos à gula especulativa da criançada. Vovô seguia atrás, meus primos, minha irmã e eu, à frente em alvoroçada correria. Catávamos os morangos o máximo que podíamos. Depois, com as mãos cheias, levávamos à boca, sem lavar, um a um, avidamente, o espólio da conquista. De volta a casa, após o banho morno em tina de tábuas de madeira, vovó nos alimentava com um nutritivo prato de papas.
Era um tempo de inconsequências e alegrias. Pescarias com papai na Ponta da Doca, passeios na avenida beira-mar, o primeiro sorvete (gelado) na antiga Praça do Infante, que perdeu a expressiva estátua do eminente vulto da nossa história não sei para aonde..., piqueniques na estrada para Castelo Branco. Colher frutas nas Quintas e quintais, se arranhar nos silvados ao apanhar amoras. Depois das brincadeiras, comer as sopas de vinho, de leite, o peixinho da época, as batatas, as couves e os legumes, era preciso ficar “perfeita” (gordinha, com as faces coradas), dizia minha mãezinha. Mas bom mesmo era “limpar” com os dedos o tacho das geleias de maçãs com tomate, de nêsperas, de peras, de ameixas, que meus pais faziam para esperar a carestia frutífera do Inverno. À noite, espreitar os jogos de hóquei sobre patins do Sporting Clube da Horta, encarapitada no muro da casa da minha amiguinha, Líbia Maria, ou assistir a garbosa filarmónica tocar, na Praça da República.
Aos Domingos, banhos de mar e de sol nas areias negras da Praia do Almoxarife. À tarde, visitas à casa do tio padre, irmão corvino da minha avó paterna, que ficava ao lado da Igreja da Graça, aonde era o pároco. Enquanto os adultos discutiam assuntos familiares, minhas tias ofereciam deliciosos biscoitos de nata com chávenas de chá com leite para os pequenos que, após comer e beber, se entretinham na janela da sala olhando pela luneta os navios e barcos aventureiros que navegavam na rota que ia do Continente para a América.
Nos dias bons, de mar calmo e ar sereno, atravessávamos o Canal, e no Pico íamos com meus tios às vindimas. Chupava-se uvas a arrebentar, ou até dar dor de barriga... Quando a lua chegava, voltava-se para casa aos acordes de algum bandolim, ou em cantoria...
No Faial, após a colheita e secagem do milho, no final da outonal estação, havia os tão esperados serões na loja que ficava no andar térreo da Casa do Leão, Alto da Vista Alegre, na Horta, onde meus pais moravam, no inicio da década de 50.
Após o trabalho de cada um, à noite, a família reunida descascava e debulhava o milho colhido, enquanto minha bisavó, uma picarota baixinha, roliça, de óculos de aro de tartaruga, sempre vestida de preto, com lenço na cabeça, amarrado sob o queixo, lia para o grupo debulhador e atento " As Pupilas do Senhor Reitor", "A Toutinegra do Moinho", "A Dama das Camélias", "Os três Mosqueteiros", e outros sucessos literários daquele tempo. O que me intrigava era que ela apesar de ler com perfeição, como se estivesse vivendo o conto, não sabia escrever! Talvez porque no século em que ela nasceu (1880) o papel e lápis fossem materiais raros, difíceis de naquelas ilhas obter.
Enquanto os adultos trabalhavam ouvindo os romances que estimulavam a imaginação e consolavam a alma com palavras de amor, suspense e drama, as desassossegadas crianças subiam e desciam as montanhas de maçarocas de milho. Vez por outra, alguém gritava, achei o “milho rei” (aquele que tinha grãos vermelhos). Havia um prémio ou castigo, não sei; dar ou receber um beijinho de alguém querido. Depois de debulhado e ensacado, o milho era vendido ou ia para o moinho.
Quando o Inverno chegava, na época da matança dos porcos, eu me escondia assustada e tampava os ouvidos penalizada com os gritos dos animais que, sangrados até a morte, iriam nos dar com o seu sacrifício a banha, as morcelas, as linguiças, os toucinhos e carnes que nos sustentariam no frio.
A casa do tio Padre Avelar, na Praia do Almoxarife
Natais de pinheiros gigantes, enfeitados com nozes revestidas de papel prateado, presépios ornados de brancas camélias e perfumadas laranjas, castanhas torradas, inhames e ervilhas, vinhos de cheiro, massa cevada, chicharro frito, batata doce cozida, lapas, polvo, bolos de milho... Meu passado açoriano é um imenso e saudoso canteiro de sabores, odores e cores onde sentimentos felizes povoam até hoje a minha memória.
Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 25 de Julho de 2010
Fotos: Arquivo particular