Kinshasa vista a partir de Brazzaville. Ou será o contrário?
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Em 1963, por sugestão do distribuidor da cerveja Cuca em Cabinda, foi decidido fazer um rápido estudo de mercado para a eventual exportação de cerveja para o Congo, ex-francês, hoje Zaire, e da decisão de gabinete à acção foi um instante.
A viagem revestiu-se de algumas situações caricatas hoje, mas cansativas. Começa com a saída de Luanda, num vôo da Air Congo, uma subsidiária da Air France, num avião quadrimotor. Dois passageiros para embarcarem para Brazzaville. O avião, quase o único ali estacionado em frente ao edifício do aeroporto, horário de saída de acordo com o previsto, tudo aparentemente em ordem, vou aguardar na esplanada, onde havia um pequeno bar. Só outra mesa ocupada, com o outro passageiro. Chegada a hora vêm avisar que o vôo ia sair um pouco atrasado. Uns trinta minutos. Depois destes trinta, mais trinta.
Da esplanada via-se algum movimento em volta do avião. Um ou dois mecânicos e mais uns tripulantes, o que pressupunha problema técnico.
- Afinal o que se passa? Já estamos com três horas de atraso e nada?
- É o motor de arranque que não funciona, mas já estão a terminar.
Mais uma hora.
- Então?
- Quebrou-se a corda.
- Essa agora! Quebrou-se a corda? Qual corda? Não me diga que aquilo é como os motores “outboard” que pegam com uma corda?
- Não sei. Mas foi o que me informaram.
Nessa altura os dois únicos passageiros para aquele vôo e também únicos clientes no bar esplanada do aeroporto, já conversavam e dividiam cervejas que iam bebendo em conjunto e quando olham para o avião, vêem, com espanto q.b. um pequeno tractor a ser engatado a uma corda, por sua vez enrolada à volta do motor do avião!
- Querem ver que é verdade? Que aquilo pega mesmo como os motores dos barcos!
Azar o nosso porque o tractorista não era marinheiro e, arrancando de repente, voltou a quebrar a tal corda. Matámos a charada, continuámos esperando, já se fazia noite e no aeroporto não havia mais cordas! Decidi intervir.
- Se vocês continuarem a usar o tractor de esticão, não há corda que aguente! Expliquei a complexa tecnologia da corda!
Passado um bocado chegou outra corda e eu gritava do alto da esplanada: - Cuidado. Devagar. Devagar.
Duvido que tenham ouvido alguma coisa mas assim mesmo procederam e o motor pegou. Não foi necessário que nos chamassem. Corremos os dois, passámos o controle (só havia dois a controlar e já tínhamos sido convenientemente controlados) e levando um monte de vento e poeira no nariz, porque o motor ficou ligado e era o que ficava do lado da porta do avião, lá nos acomodámos.
O vôo fazia escala em Pointe Noire, na costa, um pouco ao norte de Cabinda, onde aí sim, entrou um bom número de passageiros, sem que o motor fosse desligado. Chegámos, só com seis horas de atraso a Brazzaville!
O hotel, reminiscência do savoir vivre francês nos trópicos, era uma delícia. Fora da cidade, no topo de um morro, uma maravilhosa vista sobre o rio Congo, enorme, larguíssimo, caudaloso, vendo-se em baixo a cidade e na outra margem a capital do ex Congo Belga, Leopoldville, hoje Kinshasa. Quartos amplos, confortáveis, muito bom gosto, bela sala de jantar, larga varanda em toda a frente sobre o rio... Muito bom.
Sair dali só de taxi. A pé até à cidade não era nenhuma viagem, atravessava-se uma parte de estrada sem casas, só mata, depois a área suburbana e finalmente o centro onde habitualmente se encontram, ou encontravam, os lugares de decisão económica, e além disso, África é quente! A nossa pele, segundo os especialistas e nós mesmo constatamos, aguenta mal o calor, pior ainda quando se tem que aparecer vestido minimamente decente para tratar de negócios. Não necessariamente de casaco e gravata, mas pelo menos que não se esteja coberto de poeira e suor!
Nas andanças pela cidade cruzei-me com um angolano, de Benguela, que eu conhecera no meu primeiro ano de Angola. Espanto mútuo, o que faz você aqui, quando chegou, etc. Ele vivia ali refugiado. Perseguido pela famigerada PIDE, trabalhava como locutor da Rádio Brazzaville nas suas emissões em língua portuguesa dirigidas aos povos de Angola, mentalizando-os, incitando-os à luta contra o colonialismo. Já não me lembro, nem um pouco, do seu nome. Só tenho ideia que era bem mais velho do que eu, (uns dez ou quinze anos?) baixinho, entristecido por viver longe da terra de que tanto gostava, apesar de não ter, que me lembre, quase cor alguma nas veias. Tinha, sim, amor à terra. Mas...
Ficou entusiasmado com a minha presença e com a ideia de Angola, a sua terra, ter já uma indústria capaz de exportar. Bebemos umas cervejas e pediu-me para me entrevistar lá na Rádio.
- Com uma condição. Nada de políticas.
- Só quero falar da nossa terra e mostrar aos angolanos que até temos uma companhia que pode exportar cerveja para aqui. Se eu sinto orgulho disso, penso que todos os angolanos gostarão de saber.
Combinámos os tópicos da conversa e no outro dia lá fui. Meia hora de conversa radio difundida sobre Angola. Verdade, verdadinha, fiquei com receio de após o meu regresso ser chamado à PIDE. Não fui, mas os gajos não devem ter deixado de vasculhar a minha vida!
Perguntei-lhe se correria algum perigo em atravessar o rio e visitar Leopoldville. Eu era português, vivia em Angola, e do Zaire saíam muitos guerrilheiros para ali combaterem. Podia ir descansado.
Dia seguinte, Sábado, cauteloso, desconfiado, e porque não?, receoso, lá fui. Atravessei aquele imenso e caudaloso rio e, uma vez na outra banda achei que a melhor maneira de visitar a cidade seria de taxi. Foi. O motorista era um sujeito novo, simpático p’ra caramba, muito prestável.
- Onde o senhor quer ir?
- Eu não conheço nada, nada, de Kinshasa. É a primeira vez que aqui venho, estou de passagem em Brazzaville, e vim fazer um pouco de turismo. Você vai ser o meu cicerone. Leva-me onde quiser, demora o tempo que quiser, e vai-me explicando o que achar que vale a pena.
Olhou para mim com ar de espanto e lá vamos nós beirando o rio, acompanhando a corrente. Via-se na outra margem, altaneiro, o hotel onde eu estava hospedado e, agora do nosso lado, numa imensa fortaleza em posição igualmente altaneira, fortemente guardada por soldados, a residência de sua majestade o dono do Zaire, Joseph Kasavubu.
Muito mal dele falou o motorista! Como todos, tinha esperado que a independência trouxesse uma melhoria generalizada para o povo! Coitado.
Seguimos um pouco por fora da cidade, que como qualquer cidade, em qualquer parte do mundo, pouco tem para mostrar! No regresso, numa praceta no meio dum cruzamento de duas ruas, ou avenidas, dois carros chocados e uma meia dúzia de homens todos discutindo.
Fomo-nos aproximando e já em cima diz-me o eficiente cicerone:
- Isto é normal. Esta gente conduz de qualquer modo e depois de chocarem saem dos carros e esmurram-se. Mas este acidente é melhor! Um dos carros é de um ministro que está apanhando porrada do outro que não quer saber se ele é ministro!
Deixámos a caricata refrega acesa! No meio dum cruzamento um ministro sai do carro, depois de chocar com um cidadão comum, para reclamar sem razão, só porque se investia na dignidade de ministro, e apanha uns chapadões no focinho! Quem dera que essa moda chegue ao Brasil! Ou a Portugal.
Vamos em frente. Voltámos ao ponto de partida. Paguei a corrida, e dei uma boa gratificação ao simpático motorista, africano puro, mas gente boa. Gente simples.
Faltava ainda meia hora para o ferry sair de volta a Brazza. Numa praceta perto do cais um vigarista sacava dinheiro aos simplórios que se atreviam a apostar adivinhando onde estava ou estaria uma moeda escondida debaixo de um de três copos invertidos. Conhecem aquele jogo, não é? O famoso jogo da Laranjinha. O sujeito coloca a moeda debaixo de um dos copos, troca a sua posição com bastante velocidade de um lado para o outro, a gente segue com a vista o copo debaixo do qual ele colocou a moeda, aposta que está lá, mas não está. Não está nunca em lugar nenhum porque aquilo é um truque de mãos e a moeda fica sempre escondida na mão do habilidoso vigarista, que assim, ganha sempre. Rouba sempre. Uns dez ou quinze de volta do vigaristazito, largando algumas notas que eram perdidas, sempre acompanhadas dum Oohh! de espanto, porque de facto a moeda nunca estava onde todos tinham a certeza que devia estar!
Aproximei-me, já conhecia o truque, e fiquei um pouco a ver e divertir-me a ver aquelas caras quando perdiam! O vigarista quando me viu achou que tinha ali pato mais rico, o único claro no meio de tantos escuros, e insistia para que eu apostasse também. Não. Só ver. Quase a hora da saída do barco, achei então que para despedida, e retribuir um pouco pelo espectáculo que me tinha ocupado os últimos momentos naquela cidade e país, decidi também pagar uma nota para ver. Ainda nem tinha perdido, como todos os outros, quando surge a polícia para prender o vigarista e mais os que estavam jogando! O meu coração bateu com força, tanto mais que não era fácil disfarçar-me sendo o único facilmente diferençável! Aquela gente foi sensacional. Rodearam-me, procurando interpor-se entre mim e os polícias que corriam na nossa direção, e diziam-me:
- Foge, foge depressa!
A uns vinte metros dali havia um café, bar. Eu não podia correr porque ainda mais nas vistas daria. Rabo entre as pernas virei costas e consegui entrar no café, de onde através das janelas conseguia acompanhar o que se passava. O vigarista apanhado, discutia com a polícia que acabou por levá-lo. Os apostadores e meus protectores mostravam-se satisfeitos por me verem a salvo, e faziam-me sinal para que me mantivesse ali escondido ainda um bocado. Pedi uma cerveja que bebi com a mão trémula e deixei-me ali ficar até que a vida naquela praça e os batimentos do meu coração voltassem ao normal. Logo que pude fui para o cais e no primeiro barco voltei para Brazzaville, para o hotel! O susto foi forte!
Ficou-me de Kinshasa a saudade daquela atitude do povo que, parecendo impossível, protegeu o único branco que por ali se tinha arriscado a “jogar” com eles!
Continua...
Francisco Gomes de Amorim
Do livro “Loisas da Arca do Velho”, inédito, 2001