Elos Clube de Tavira

Dezembro 18 2010

(*)

 

Conhecer um pouco do passado de ANGOLA

 

http://www.cubata-angola.com/p/fotos-de-angola-da-era-colonial.html

 

 

Amável colaboração de Veladimir Cruz

 

 

(*)http://www.google.pt/imgres?imgurl=http://mentesbrilhantes.files.wordpress.com/2008/11/3221358-my_evening_view-luanda.jpg&imgrefurl=http://mentesbrilhantes.wordpress.com/2008/11/26/luanda-um-desafio-aos-talentos/&usg=__QLJ9B3AUvwjHYzfUMudLk38EAz8=&h=420&w=560&sz=43&hl=pt-pt&start=0&zoom=1&tbnid=NsznmRfoQLmHBM:&tbnh=167&tbnw=220&prev=/images%3Fq%3Dluanda%26um%3D1%26hl%3Dpt-pt%26sa%3DN%26biw%3D1021%26bih%3D681%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=rc&dur=327&ei=Wc0MTcaHD4WDswbs6PXbDA&oei=Wc0MTcaHD4WDswbs6PXbDA&esq=1&page=1&ndsp=12&ved=1t:429,r:0,s:0&tx=119&ty=104

publicado por Henrique Salles da Fonseca às 15:00
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Agosto 27 2010

Basil Davidson

(Bristol, 9 de Novembro de 1914 – Londres, 9 de Julho de 2010)

 

 

A invenção das tribos

 

Antes do imperialismo moderno, os europeus que visitavam e escreviam sobre o nosso continente (África) raramente estabeleceram uma associação entre “tribalismo”, “patriotismo” e a tendência para a criação de um “nacionalismo” em África. Porém, o “tribalismo” moderno – designação de Basil Davidson para o “clientelismo” – é bastante diferente, uma vez que “floresce na desordem, é terrivelmente destruidor para a sociedade civil, arrasa a moralidade e escarnece do Estado de Direito”.

 

Historiadores de muitos países vêm, de forma crescente, revelando a existência de uma sociedade civil nas comunidades africanas. Contudo, a partir da partilha de África na Conferência de Berlim, em finais do século XIX, essa mesma sociedade civil, depois de minada, foi aniquilada por décadas de domínio estrangeiro e, aparentemente, “não deixou quaisquer estruturas válidas para o futuro”. Refere ainda Basil Davidson que foi evidentemente por causa disso que, a política colonial britânica afirmou que a sua empreitada em África era “construir uma nação”, porque em Londres se supunha que esse desiderato estava aquém das capacidades dos próprios africanos.

 

Inicialmente, os britânicos (e não só) deram-se ao trabalho de inventar tribos nas quais se deviam integrar os africanos. Mais tarde, com a aproximação da possível independência passaram a construir estados-nação. Na medida em que, de acordo com os britânicos, não existiam quaisquer modelos africanos, estes Estados tinham que ser construídos com base nos modelos europeus. Daí que, estes mesmos modelos, sendo estrangeiros, não conseguissem alcançar legitimidade aos olhos da maioria dos cidadãos africanos e rapidamente demonstraram a sua inadequação para proteger e promover os seus interesses, excepto nos raros casos de alguns privilegiados.

 

A génese do clientelismo

 

Tendo ficado com os restos de uma sociedade civil frágil e falível, a maioria desses cidadãos procurou encontrar formas de defesa. A principal forma de o fazer foi através do tribalismo (reconhecidamente um “termo sempre traiçoeiro”), ou melhor, do clientelismo: “uma espécie de patrocínio corrupto, dependente de redes pessoais ou familiares e de outras redes similares de interesses locais”. Sendo um “sistema”, o clientelismo tornou-se, em grande medida, na forma de funcionamento da política em África. As suas rivalidades semeiam naturalmente o caos. Tal como a miséria económica, que actualmente aflige grande parte de África. Este tribalismo moderno ou “clientelismo”, segundo Davidson, “reflecte, em grande medida, características patológicas do Estado [africano] contemporâneo”: do estado-nação pós-colonial ou como outros designam “neocolonial”, resultantes da descolonização. Joseph Miller, no seu livro “Poder Político e Parentesco – Os antigos Estados Mbundu em Angola” já referia que “a história política dos Mbundu não se moveu numa direcção única, tendo consistido antes numa alternância irregular entre o triunfo de instituições baseadas nas lealdades de parentesco e o daquelas que faziam a articulação com a exigência dos reis. Repetidas vezes emergiam reis para reivindicar os serviços dos membros dos grupos de parentesco Mbundu, os quais persistentemente se viam a si próprios primeiro como membros das linhagens e apenas em segunda instância, e geralmente sob ameaça, como obedientes a uma autoridade externa”.

 

No texto “Angola: O Passado vivido e o Presente em Presença – hipótese para uma análise antropológica da crise em curso”, o seu autor, Rui Duarte de Carvalho, refere que o Estado para garantir a sua própria reprodução, fez nascer uma classe político-burocrática capaz de recuperar e adaptar “sistemas de dependência e de clientela familiar, de parentesco, étnica ou regional, factores de identificação capazes de garantir o acesso a estatutos, nomeadamente económicos e sociais, inalcançáveis por outras vias”. Mas, segundo o mesmo autor, tal aconteceu em toda a parte do mundo em que as condições estruturais, do passado e do presente, se assemelhavam às angolanas.

 

 Filipe Zau

 

in Jornal de Angola, 16 de Julho de 2010

publicado por Henrique Salles da Fonseca às 08:13
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Agosto 27 2010

 

 

A propósito da morte do jornalista, escritor e historiador inglês Basil Davidson, revisitei um dos últimos trabalhos, que, em língua portuguesa, surgiu sob o título “O Fardo do Homem Negro – Os efeitos do Estado-Nação em África”, uma edição angolana da Associação Chá de Caxinde.

 

Sobre a questão étnica africana, Basil Davidson afirma que num sentido histórico bastante lato, “o tribalismo tem sido usado para exprimir a solidariedade e as lealdades comuns de pessoas que partilham entre si um país e uma cultura”.

 

Citando Crawford Young, considerou inócuo o tribalismo antigo e ao clientelismo de Estado apelida-o de moderno “tribalismo” em África.

 

Para Young, professor de Ciência Política da Universidade de Wisconsin (Madison, EUA), que em 1963 publicou um estudo sobre a experiência da edificação do estado-nação na actual República Democrática do Congo, as questões étnicas ligadas ao tribalismo sempre existiram em África ou em qualquer outro lugar. Para Davidson o tribalismo tem sido, muitas vezes, uma força do bem, que cria uma sociedade civil dependente de leis e de um Estado de Direito. Daí que, neste sentido, o conceito de “tribalismo”, para ele, pouco divirja, na prática, do conceito de “nacionalismo”.

 

 

Nacionalismo e patriotismo

 

(...) ao falarmos de “nacionalismo” ou de “patriotismo”, a rigor, não estamos a dizer a mesma coisa.

 

(...) a “nação” não é mais do que uma ideia ou representação e ela implica um passado comum do qual os membros da comunidade têm certa consciência. No conceito de nação, a unidade procura manifestar-se através de instituições comuns, é simultaneamente política, económica e, para os casos da grande maioria dos países europeus, normalmente cultural, já que para a grande maioria dos países africanos, devido à divisão de África na Conferência de Berlim (1884-1885), de acordo com os interesses das potências coloniais da época, dificilmente existe uma unidade cultural.

 

Por outro lado, (...) o conceito de “pátria” não está ligado a um conceito geográfico mas sim à vivência e convicções subjectivas do indivíduo. Na perspectiva sociológica, o conceito de pátria (...) está associado a atitudes psíquicas de um grupo social e corresponde ao que usualmente se designa por herança cultural desse mesmo grupo. Daí que as pessoas que partilham as mesmas experiências e apresentam os mesmos pontos de vista em relação à história do grupo, estão ligadas a uma mesma “pátria”.

 

Assim sendo e salvo melhor opinião, a similaridade mais próxima ao conceito de “tribalismo”, de acordo com a perspectiva de Basil Davidson, é o “patriotismo”, quer pelo associativismo no contexto de uma sociedade civil, quer por outros possíveis aspectos de ordem maioritariamente cultural e não o “nacionalismo” por razões de ordem maioritariamente política e institucional.

 

(continua)

 

 Filipe Zau

 

in Jornal de Angola, 16 de Julho de 2010

publicado por Henrique Salles da Fonseca às 07:56
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Agosto 13 2010

 

 

... NOS PAÍSES BAIXOS!

 

 

Quase lá nos antigamentes, já vão 45 anos, fui para a Europa fazer uma série de estágios e visitas a fábricas de material fotográfico, microscopia, raios X, etc.

 

De Munich a Leverkusen, a seguir Antuérpia, na Gevaert – que Deus tenha em sua memória – para mexer com filmes de artes gráficas.

 

Perto do final do estágio, muito amável, o director de exportação que tinha África a seu cargo, convidou-me para jantar em sua casa, um tanto fora do centro da cidade. Eu tinha comprado um carro, usado, mas óptimo, e com um pequeno esquema que o anfitrião me passou, consegui chegar no horário combinado.

 

Só ele e a mulher. Sentámo-nos na sala onde já estava em cima da mesa uma garrafa de whisky e dois copos - daqueles largos e não tão baixos – e o dono da casa, sempre amável, encheu o meu copo até acima, sem gelo nem nada. O dele, igual. Quando vi aquela brutalidade de bebida pensei que não conseguiria depois sair dali, mas fomos bebendo, devagar, e eu, sem saber bem como, consegui tragar tudo e ficar mais ou menos normal. O dono da casa, ainda amável, perguntou se eu queria repetir a dose que recusei. Para ele, mais meio copo.

 

Entretanto a dona da casa avisa que o jantar está servido e lá fomos os três para a mesa onde, amáveis, estava, aberta, uma garrafa de Casal Garcia (!). A meio do primeiro prato o nosso amigo empurra o prato, talheres e copos, afasta tudo quanto tem na frente, deita a cabeça na mesa e... ali fica ressonando que nem um porco.

 

A senhora, envergonhada, quis justificar, dizendo que o marido andava com muito trabalho, cansado, etc., mas ele estava era bebedissimo. Ficou a senhora à mesa e eu, sem dizermos uma palavra, ela a levantar-se para levar os pratos à cozinha e trazer outras comidas, e por fim aparece com um bolo daqueles que embucham o mais destemido, que eu aproveitei para ver se ajudava a abafar o tanto whisky que tinha bebido, além do copo do vinho que, por honra do país e para não fazer má figura, fui obrigado a beber!

 

Acabou o jantar e nessa altura o bêbado acorda e novamente tenta servir-me mais bebida. Como a conversa não tinha a menor hipótese de se fazer, porque o homem não abria mais do que um olho de cada vez, agradeci muito e fui embora, alegando que era tarde, etc. Aquelas desculpas esfarrapadas mas necessárias.

 

Entrei no carro e nessa altura o esquema do caminho a percorrer choca no primeiro obstáculo: a rua por onde viera agora era contramão! Procurei uma “paralela” que desse retorno, e comecei a dar voltas àquela área, meio perdido, sem encontrar o caminho. Ninguém nas ruas a quem perguntar, eis se não quando surge um autocarro – ônibus – e, esperto, eu, pensando que ele iria para o centro onde estava o meu hotel, decidi segui-lo. Andei, parei, andei, parei e cada vez me parecia que mais me afastava, quando de repente o dito autocarro entrou num portão e sumiu. Era a sua garagem e encerrava o dia de trabalho!

 

Esperei algum tempo até que um outro carro sai da garagem. E eu atrás. Anda, pára, anda, pára e ao fim de quase uma hora, desde que saí daquele “magnífico” jantar, reconheci uma rua do centro e cheguei ao hotel!

 

Se fosse hoje e a Polícia me mandasse soprar no “bafómetro”, teria ido directo para a prisão!

 

O estágio a chegar ao fim, no último dia os vários estagiários – cinco – decidiram convidar o “mestre”, um jovem e simpático engenheiro, para um jantar de despedida. Comemos “moulles marinières”, uma delícia que ainda hoje me faz água na boca.

 

Ninguém se embebedou! E no dia seguinte a caminho de Amsterdam. Bem me avisaram que a meteorologia previa intenso nevoeiro vindo da Mancha, e que as estradas ficavam perigosas, mas assim mesmo no fim do dia resolvi arriscar.

 

Ao passar em Rotterdam, já noite, dentro da cidade, não se via um palmo adiante do nariz, nem sequer as placas indicando as estradas.

 

Entrei numa rotunda e depois de me terem informado que devia sair na segunda rua à direita, andando com o carro a passo de caracol e junto ao passeio, os olhos bem abertos à procura da tal segunda rua, a verdade é que não conseguia distinguir nenhuma “saída”.

 

Nevoeiro na «luminosa Europa»

 

 

Passado um pouco ouço uma sirene da Polícia atrás de mim. Parei. Sai do carro um polícia, atencioso, e pergunta o que ando ali a fazer. “Á procura da estrada para Amsterdam, mas não consigo encontrar!”

 

“O senhor já deu três voltas à rotunda! Venha atrás de nós que lhe mostramos o caminho, mas tenha muito cuidado que a estrada está toda assim!”

 

Quando chegamos à estrada e não havia mais que errar, deixaram-me seguir, sempre avisando que o caminho estava perigoso. E estava. Muito.

 

E lá vou, ainda a passo de caracol. Já me doíam os olhos e a cabeça com o esforço para não sair da estrada.

 

A certa altura um “anjo salvador”: um letreiro luminoso indicava ali um hotel! Chegava ao fim o meu sofrimento!

 

No dia seguinte de manhã segui viagem, sem nevoeiro, atravessando aqueles campos lindos e cheguei ao meu destino!

 

Rio de Janeiro, 17 de Julho de 2010

 

 Francisco Gomes de Amorim

publicado por Henrique Salles da Fonseca às 12:04
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Agosto 04 2010

 

 

MUKAI*

 

1

Corpo já lavrado

equidistante da semente

é trigo

é joio

milho híbrido

massambala

 

resiste ao tempo

dobrado

exausto

sob o Sol que lhe espiga

a cabeleira.

 

2

O ventre semeado

deságua cada ano

os frutos tenros

das mãos

(é feitiço)

nasce a manteiga

a casa

o penteado

o gesto

acorda a alma

a voz

olha pra dentro do silêncio milenar.

 

3

Um soluço quieto

desce

a lentíssima garganta

(rói-lhe as entranhas

um novo pedaço de vida)

os cordões do tempo

atravessam-lhe as pernas

e fazem a ligação terra.

 

Estranha árvore de filhos

uns mortos e tantos por morrer

que de corpo ao alto

navega de tristeza

as horas.

 

4

O risco na pele

acende a noite

enquanto a lua

(por ironia

ilumina o esgoto

anuncia o canto dos gatos)

De quantos partos se vive

para quantos partos se morre

um rito espera-se faca

na garganta da noite

 

recortada sobre o tempo

pintada de cicatrizes

olhos secos de lágrimas

Domingo, organiza a cerveja

de sobreviver os dias. 

 

 Ana Paula Tavares

 http://www.google.pt/imgres?imgurl=http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/angola/img/ana_paula_tavares.jpg&imgrefurl=http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/angola/ana_paula_tavares.html&usg=__uPiXHy-We8vSxxzqlyRaW6xCHVA=&h=175&w=262&sz=11&hl=pt-BR&start=1&tbnid=cLeamZbuMftMOM:&tbnh=75&tbnw=112&prev=/images%3Fq%3DAna%252BPaula%252BTavares%252BAngola%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26rlz%3D1T4SUNA_enPT292PT293%26biw%3D967%26bih%3D415%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1

 

* Mukai = mulher

publicado por Henrique Salles da Fonseca às 09:21
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Maio 27 2010

Kinshasa and Brazzaville on opposite sides of the Congo river

Kinshasa vista a partir de Brazzaville. Ou será o contrário?

http://www.google.pt/imgres?imgurl=http://congoplanet.com/pictures/gallery2/kinshasa_congo_brazzaville.jpg&imgrefurl=http://congoplanet.com/picview.jsp%3FpictureID%3D19%26n%3D1%26ch%3D38&usg=__XMBdyfike3zQFs8sn_Xgvmu4_Ec=&h=399&w=534&sz=49&hl=pt-PT&start=13&um=1&itbs=1&tbnid=GUqCZkPlbGm1oM:&tbnh=99&tbnw=132&prev=/images%3Fq%3Dbrazzaville%26um%3D1%26hl%3Dpt-PT%26sa%3DN%26gl%3Dpt%26tbs%3Disch:1 

 

 

Em 1963, por sugestão do distribuidor da cerveja Cuca em Cabinda, foi decidido fazer um rápido estudo de mercado para a eventual exportação de cerveja para o Congo, ex-francês, hoje Zaire, e da decisão de gabinete à acção foi um instante.

 

A viagem revestiu-se de algumas situações caricatas hoje, mas cansativas. Começa com a saída de Luanda, num vôo da Air Congo, uma subsidiária da Air France, num avião quadrimotor. Dois passageiros para embarcarem para Brazzaville. O avião, quase o único ali estacionado em frente ao edifício do aeroporto, horário de saída de acordo com o previsto, tudo aparentemente em ordem, vou aguardar na esplanada, onde havia um pequeno bar. Só outra mesa ocupada, com o outro passageiro. Chegada a hora vêm avisar que o vôo ia sair um pouco atrasado. Uns trinta minutos. Depois destes trinta, mais trinta.

 

Da esplanada via-se algum movimento em volta do avião. Um ou dois mecânicos e mais uns tripulantes, o que pressupunha problema técnico.

 

- Afinal o que se passa? Já estamos com três horas de atraso e nada?

- É o motor de arranque que não funciona, mas já estão a terminar.

 

Mais uma hora.

- Então?

- Quebrou-se a corda.

- Essa agora! Quebrou-se a corda? Qual corda? Não me diga que aquilo é como os motores “outboard” que pegam com uma corda?

- Não sei. Mas foi o que me informaram.

 

Nessa altura os dois únicos passageiros para aquele vôo e também únicos clientes no bar esplanada do aeroporto, já conversavam e dividiam cervejas que iam bebendo em conjunto e quando olham para o avião, vêem, com espanto q.b. um pequeno tractor a ser engatado a uma corda, por sua vez enrolada à volta do motor do avião!

 

- Querem ver que é verdade? Que aquilo pega mesmo como os motores dos barcos!

 

Azar o nosso porque o tractorista não era marinheiro e, arrancando de repente, voltou a quebrar a tal corda. Matámos a charada, continuámos esperando, já se fazia noite e no aeroporto não havia mais cordas! Decidi intervir.

 

- Se vocês continuarem a usar o tractor de esticão, não há corda que aguente! Expliquei a complexa tecnologia da corda!

 

Passado um bocado chegou outra corda e eu gritava do alto da esplanada: - Cuidado. Devagar. Devagar.

 

Duvido que tenham ouvido alguma coisa mas assim mesmo procederam e o motor pegou. Não foi necessário que nos chamassem. Corremos os dois, passámos o controle (só havia dois a controlar e já tínhamos sido convenientemente controlados) e levando um monte de vento e poeira no nariz, porque o motor ficou ligado e era o que ficava do lado da porta do avião, lá nos acomodámos.

 

O vôo fazia escala em Pointe Noire, na costa, um pouco ao norte de Cabinda, onde aí sim, entrou um bom número de passageiros, sem que o motor fosse desligado. Chegámos, só com seis horas de atraso a Brazzaville!

 

O hotel, reminiscência do savoir vivre francês nos trópicos, era uma delícia. Fora da cidade, no topo de um morro, uma maravilhosa vista sobre o rio Congo, enorme, larguíssimo, caudaloso, vendo-se em baixo a cidade e na outra margem a capital do ex Congo Belga, Leopoldville, hoje Kinshasa. Quartos amplos, confortáveis, muito bom gosto, bela sala de jantar, larga varanda em toda a frente sobre o rio... Muito bom.

 

Sair dali só de taxi. A pé até à cidade não era nenhuma viagem, atravessava-se uma parte de estrada sem casas, só mata, depois a área suburbana e finalmente o centro onde habitualmente se encontram, ou encontravam, os lugares de decisão económica, e além disso, África é quente! A nossa pele, segundo os especialistas e nós mesmo constatamos, aguenta mal o calor, pior ainda quando se tem que aparecer vestido minimamente decente para tratar de negócios. Não necessariamente de casaco e gravata, mas pelo menos que não se esteja coberto de poeira e suor!

 

Nas andanças pela cidade cruzei-me com um angolano, de Benguela, que eu conhecera no meu primeiro ano de Angola. Espanto mútuo, o que faz você aqui, quando chegou, etc. Ele vivia ali refugiado. Perseguido pela famigerada PIDE, trabalhava como locutor da Rádio Brazzaville nas suas emissões em língua portuguesa dirigidas aos povos de Angola, mentalizando-os, incitando-os à luta contra o colonialismo. Já não me lembro, nem um pouco, do seu nome. Só tenho ideia que era bem mais velho do que eu, (uns dez ou quinze anos?) baixinho, entristecido por viver longe da terra de que tanto gostava, apesar de não ter, que me lembre, quase cor alguma nas veias. Tinha, sim, amor à terra. Mas...

 

Ficou entusiasmado com a minha presença e com a ideia de Angola, a sua terra, ter já uma indústria capaz de exportar. Bebemos umas cervejas e pediu-me para me entrevistar lá na Rádio.

 

- Com uma condição. Nada de políticas.

- Só quero falar da nossa terra e mostrar aos angolanos que até temos uma companhia que pode exportar cerveja para aqui. Se eu sinto orgulho disso, penso que todos os angolanos gostarão de saber.

 

Combinámos os tópicos da conversa e no outro dia lá fui. Meia hora de conversa radio difundida sobre Angola. Verdade, verdadinha, fiquei com receio de após o meu regresso ser chamado à PIDE. Não fui, mas os gajos não devem ter deixado de vasculhar a minha vida!

 

Perguntei-lhe se correria algum perigo em atravessar o rio e visitar Leopoldville. Eu era português, vivia em Angola, e do Zaire saíam muitos guerrilheiros para ali combaterem. Podia ir descansado.

 

Dia seguinte, Sábado, cauteloso, desconfiado, e porque não?, receoso, lá fui. Atravessei aquele imenso e caudaloso rio e, uma vez na outra banda achei que a melhor maneira de visitar a cidade seria de taxi. Foi. O motorista era um sujeito novo, simpático p’ra caramba, muito prestável.

 

- Onde o senhor quer ir?

- Eu não conheço nada, nada, de Kinshasa. É a primeira vez que aqui venho, estou de passagem em Brazzaville, e vim fazer um pouco de turismo. Você vai ser o meu cicerone. Leva-me onde quiser, demora o tempo que quiser, e vai-me explicando o que achar que vale a pena.

 

Olhou para mim com ar de espanto e lá vamos nós beirando o rio, acompanhando a corrente. Via-se na outra margem, altaneiro, o hotel onde eu estava hospedado e, agora do nosso lado, numa imensa fortaleza em posição igualmente altaneira, fortemente guardada por soldados, a residência de sua majestade o dono do Zaire, Joseph Kasavubu.

 

Muito mal dele falou o motorista! Como todos, tinha esperado que a independência trouxesse uma melhoria generalizada para o povo! Coitado.

 

Seguimos um pouco por fora da cidade, que como qualquer cidade, em qualquer parte do mundo, pouco tem para mostrar! No regresso, numa praceta no meio dum cruzamento de duas ruas, ou avenidas, dois carros chocados e uma meia dúzia de homens todos discutindo.

 

Fomo-nos aproximando e já em cima diz-me o eficiente cicerone:

 

- Isto é normal. Esta gente conduz de qualquer modo e depois de chocarem saem dos carros e esmurram-se. Mas este acidente é melhor! Um dos carros é de um ministro que está apanhando porrada do outro que não quer saber se ele é ministro!

 

Deixámos a caricata refrega acesa! No meio dum cruzamento um ministro sai do carro, depois de chocar com um cidadão comum, para reclamar sem razão, só porque se investia na dignidade de ministro, e apanha uns chapadões no focinho! Quem dera que essa moda chegue ao Brasil! Ou a Portugal.

 

Vamos em frente. Voltámos ao ponto de partida. Paguei a corrida, e dei uma boa gratificação ao simpático motorista, africano puro, mas gente boa. Gente simples.

 

Faltava ainda meia hora para o ferry sair de volta a Brazza. Numa praceta perto do cais um vigarista sacava dinheiro aos simplórios que se atreviam a apostar adivinhando onde estava ou estaria uma moeda escondida debaixo de um de três copos invertidos. Conhecem aquele jogo, não é? O famoso jogo da Laranjinha. O sujeito coloca a moeda debaixo de um dos copos, troca a sua posição com bastante velocidade de um lado para o outro, a gente segue com a vista o copo debaixo do qual ele colocou a moeda, aposta que está lá, mas não está. Não está nunca em lugar nenhum porque aquilo é um truque de mãos e a moeda fica sempre escondida na mão do habilidoso vigarista, que assim, ganha sempre. Rouba sempre. Uns dez ou quinze de volta do vigaristazito, largando algumas notas que eram perdidas, sempre acompanhadas dum Oohh! de espanto, porque de facto a moeda nunca estava onde todos tinham a certeza que devia estar!

 

Aproximei-me, já conhecia o truque, e fiquei um pouco a ver e divertir-me a ver aquelas caras quando perdiam! O vigarista quando me viu achou que tinha ali pato mais rico, o único claro no meio de tantos escuros, e insistia para que eu apostasse também. Não. Só ver. Quase a hora da saída do barco, achei então que para despedida, e retribuir um pouco pelo espectáculo que me tinha ocupado os últimos momentos naquela cidade e país, decidi também pagar uma nota para ver. Ainda nem tinha perdido, como todos os outros, quando surge a polícia para prender o vigarista e mais os que estavam jogando! O meu coração bateu com força, tanto mais que não era fácil disfarçar-me sendo o único facilmente diferençável! Aquela gente foi sensacional. Rodearam-me, procurando interpor-se entre mim e os polícias que corriam na nossa direção, e diziam-me:

 

- Foge, foge depressa!

 

A uns vinte metros dali havia um café, bar. Eu não podia correr porque ainda mais nas vistas daria. Rabo entre as pernas virei costas e consegui entrar no café, de onde através das janelas conseguia acompanhar o que se passava. O vigarista apanhado, discutia com a polícia que acabou por levá-lo. Os apostadores e meus protectores mostravam-se satisfeitos por me verem a salvo, e faziam-me sinal para que me mantivesse ali escondido ainda um bocado. Pedi uma cerveja que bebi com a mão trémula e deixei-me ali ficar até que a vida naquela praça e os batimentos do meu coração voltassem ao normal. Logo que pude fui para o cais e no primeiro barco voltei para Brazzaville, para o hotel! O susto foi forte!

 

Ficou-me de Kinshasa a saudade daquela atitude do povo que, parecendo impossível, protegeu o único branco que por ali se tinha arriscado a “jogar” com eles!

 

Continua...

 

Francisco Gomes de Amorim

 

Do livro “Loisas da Arca do Velho”, inédito, 2001

publicado por Henrique Salles da Fonseca às 14:26
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Abril 22 2010

 

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1 de Maio de 1954

 

Por um daqueles azares mecânicos que nunca acontecem, quebrar-se uma peça dentro da caixa de velocidades do carro (caixa de marchas), este aconteceu, e imobilizou a nossa carrinha numa subida daquela estrada, onde passava, quando muito, um a dois carros por dia.

 

Tracção completamente bloqueada, como se uma força misteriosa tivesse soldado as rodas ao chassis do carro. A custo desviou-se a inútil viatura para a berma a fim de se procurar melhor identificar a avaria e tentar consertá-la, o que se verificou ser impossível, e também para deixar passar eventual outro, a hipótese do nosso socorro.

 

O Sol dera por cumprida a sua missão, vermelho de cansaço depois de um dia de muita luz sobre este mundo, sumia sonolento atrás das árvores e do carro e, como em todas as noites tropicais, num instante as trevas nos evolveram. Não se via rigorosamente nada, além das miríades de estrelas, lindas, brilhantes, que enfeitam de alegria e vida os céus daquelas latitudes, mais ainda quando se está em zona de planalto. Só elas nos olhavam lá de cima e, naquele momento, eram o nosso único conforto.

 

Ali estavam todas elas, cintilando, em alegre conversa, quem sabe se falando de nós, ou até a falarem para nós.

 

Dentro do carro, a minha mulher, barriga a crescer, o ajudante Sebastião, e eu. A perspectiva de ali passarmos a noite, noites sempre frias em altitudes acima dos mil metros, não era agradável, mas era a única possível.

 

 Petiscou-se um pequeno farnel, composto de meia dúzia de biscoitos de socorro, passeou-se um pouco estrada acima e abaixo, procurando dar nomes a algumas daquelas estrelas, para ver se assim o tempo corria mais veloz e o desejado socorro aparecia, mas a solução acabou sendo ajeitarmo-nos, sem jeito, dentro do carro, e tentar vencer a noite com um olho aberto e outro fechado para não deixar que alguém passasse por nós sem ser visto e abordado.

 

As horas paradas dentro do relógio, e nem mesmo os vinte e poucos anos de idade nos impediam de mudar constantemente de posição naquela espécie de dormitar sentados no incómodo banco do desconfortável carro. Só o Sebastião, mais rijo, porque habituado a menos conforto, num instante dormia estendido atrás dos bancos da carrinha, enrolado num cambriquite, corpo e mente tranquilos, naquele respirar compassado e certo, dos justos.

 

O tempo corria. Aliás, o tempo não corria. Nós é que corríamos atrás dele na esperança de ver chegar novamente o dia que, mesmo que não resolvesse o problema mecânico nem fizesse aparecer o desejado socorro, nos traria uma outra sensação de conforto e de menos solidão.

 

A noite até ao mais forte assusta, preocupa. É durante a noite que os pensamentos mais negativos nos assaltam e quando as horas são mais difíceis de passar.

 

Entre o dormitar e abrir os olhos, de repente, no ar, ao longe, uma pequena chuva de faúlhas subia ao céu ao encontro daquelas estrelas. Produto do meio sono, no primeiro instante o pensamento foi acreditar que essas faúlhas seriam pequenas estrelas terrenas, avermelhadas, correndo a abraçar as suas irmãs eternas.

 

Mas logo despertos realizámos que aquelas faúlhas só podiam sair de uma locomotiva dos caminhos-de-ferro, cuja linha acompanhava a nossa estrada, que até àquele momento, não sabíamos a que distância se encontrava.

 

As pequeninas estrelas de fogo continuavam a subir, sem no entanto se deslocarem no caminho.

 

- Vejam! Ali tem uma estação do caminho-de-ferro! E o comboio está parado. Estamos garantidos.

 

Saímos do carro, e lá estava, lá, a uma distância que a noite não permitia calcular com exactidão, o espectáculo. Talvez meia-noite.

 

- Corre lá Sebastião, que a minha mulher com esta barriga tem que ir a passo!

 

Num instante Sebastião sumiu na noite e não tardou ouvir-se o ladrar forte de um cão, ao sentir a aproximação de estranhos. Pelo ronco grave, seria grande!

 

Prudente, Sebastião mais depressa do que desaparecera, regressa da noite, e prefere acompanhar-nos, seguindo prudentemente um pouco atrás de nós! Continuámos a avançar, eu sempre assobiando e chamando o mastim para lhe mostrar que íamos carregados de boas intenções e cansaço!

 

Logo se ouviu gente falando da estação, apontando para o nosso lado um lampião que nos servia para melhorar a orientação, e em pouco tempo com o peludo guarda farejando e rosnando de nariz encostado aos nossos joelhos, fomos recebidos pelo pessoal da linha e sua pequena família.

 

O comboio continuava ali parado, resfolegando e exibindo toda a sua arte jogando para o ar aquele lindo fogo de artifício, como que a chamar-nos e a mostrar-nos o caminho, enquanto tranquilo o pessoal o reabastecia de lenha e água, única função daquela estação.

 

A família do funcionário, mulher e uma filha pequenita, receberam-nos com espanto e carinho, oferecendo-nos um reconfortante e quente café.

 

Explicámos a nossa situação e ficou assente que no dia seguinte se encontraria pessoal para empurrar o avariado carro até ali, onde seria embarcado num vagão e transportado para a cidade. Com esta esplêndida solução, o carro chegaria ao destino um dia e meio depois. Havia que requisitar o vagão à Central, embarcar o carro, etc., mas a verdade é que o problema estava praticamente resolvido. Faltava o dos passageiros, e estes não podiam seguir dali em qualquer trem porque os de passageiros não paravam naquele ponto. Só de carga.

 

 Acordou-se entretanto que o Sebastião, sem ser visto, seguiria dentro do carro, no que o funcionário foi logo dizendo que, de certeza, ele não estaria preocupado em olhar para esses detalhes no momento em que o carregassem no vagão!

 

Agora, tratar de descansar o melhor possível o restante da noite. De manhã se pensaria no que fazer. Ou passava uma boleia ou se chamaria, através do telefone interno da linha do caminho-de-ferro, um qualquer socorro da povoação mais próxima.

 

Regressámos ao nosso hotel de quatro rodas, único disponível nas redondezas, para dormitar mais algumas horas, onde o desconforto foi menos sentido sabendo que boa parte do problema estava já solucionada.

 

 Sebastião, de volta ao seu cambriquite, em escassos segundos retoma o seu profundo sono, que tanta inveja nos fazia!

 

Céu a clarear, outra vez a caminho da estação onde se podia lavar a cara, tomar um café quente e até adquirir alguns alimentos que a boa mulher nos cedeu da sua dispensa para matar o bicho e abastecer o Sebastião para a prevista jornada como clandestino, deitadão dentro do carro.

 

A seguir, contratar quatro homens que empurraram o carro, cerca de um quilómetro estrada acima, comigo dentro, não por comodidade, mas porque sem carregar no pedal da embraiagem o carro não se movia. Depois as duas últimas centenas de metros, já fora da estrada, em leve descida numa estreita picada até à linha, onde ficou aguardando a vinda do seu vagão especial, já encomendado, e que chegaria no final do dia!

 

A esperança da solução para os dois e meio passageiros sobrantes era esperar que o primeiro carro a passar na estrada os pudesse carregar, ou na negativa que avisasse na povoação a seguir para alguém os ir buscar.

 

Sebastião sempre connosco, preocupado com a Senhora, que apesar da aventura e de uma noite mal recostada, estava passando muito bem.

 

Uns quantos paus, muita folha e algumas pedras e estava improvisado ao lado da estrada um assento com todo o conforto que o mato podia proporcionar. A boa vontade até ajeitou uma cama onde a futura e jovem mãe se deitou para melhor descansar e aguardar quanto tempo fosse necessário!

 

Sombra não faltava porque a região era muito arborizada com as imensas plantações de eucaliptos, o combustível das locomotivas, e a temperatura, amena, era até um convite para gozar daquela paz e daquele silêncio que tanto queríamos ver quebrado pelo roncar de um motor.

 

Ali ficámos algumas horas esperando que nos levassem, quer num sentido quer noutro, porque na primeira localidade tudo o mais se resolveria.

 

Finalmente ouve-se um motor ao longe, vê-se a poeira levantada da estrada e em poucos instantes chega um carro, que seguia, por sorte, no mesmo sentido do planalto. Carro, grande, confortável, mas já cheio com cinco passageiros!

 

Boa vontade em África nunca faltou, e num chega p’ra lá, passa a perna por aqui e outras ginásticas, lá conseguimos entrar, tendo eu que levar a minha mulher no colo!

 

Não sei já quanto tempo demorou este final de viagem, mas acabámos chegando ao destino, um pouco moídos, o que a juventude de então não permitiu que nos perturbasse muito.

 

Ao outro dia chegou o carro, e dentro, como se tivesse acabado de viajar em primeira classe, bem disposto, encantado com a aventura que lhe renderia bons dividendos no sungui junto aos amigos, o Sebastião.

 

Reboque para a oficina, dois dias para aprontar, e de novo na estrada.

 

Prosseguimos o nosso caminho agora sempre atentando de que lado nos ficava a linha do comboio, várias vezes cruzada para um e outro lado!

 

Cumprida a missão profissional que me levara às diferentes localidades situadas ao longo da linha, o destino era seguir em direcção ao sul, voltando as costas ao salvador caminho-de-ferro e atravessar uma região muito menos povoada e com difíceis possibilidades de socorros mecânicos!

 

Havia que ir, lá fomos, e como tantas outras vezes, preferindo começar a viagem ao fim do dia, quando se apanha menos calor e a luz dos faróis define melhor os buracos, imensos, daquela espécie de estradas! Além destas vantagens, o viajar de noite ainda permitia que começasse o dia seguinte mais cedo, mais descansado e mais limpo a seguir a um bom chuveiro!

 

África, na primeira metade dos anos cinquenta. Viajar por aqueles caminhos, mesmo sabendo que se chegava ao destino tendo roubado à estrada uns quantos quilos de poeira que, além de encher o carro, se carregava na roupa e em todos os poros do corpo, era uma aventura, talvez melhor, um espectáculo inesquecível.

 

A quietude e a grandeza do espaço, o tempo parado naquelas populações que nos viam passar e sempre saudavam com um sorriso, são imagens que o tempo, por muito que passe, não apaga.

 

Ao fim de largas horas de caminho, correndo pouco que o carro e a estrada, pouco mais do que picada, não permitiam outra coisa, xanas e savanas atravessadas, olhos da fauna selvagem a brilharem logo que os faróis do carro se acendiam, o que dava à jornada todo um pinturesco muito especial, perto da meia noite chegamos ao destino.

 

Povoação de pouca gente, uma larga praça à espera dum desenvolvimento que o tempo não confirmou, e um silêncio total e absoluto acompanhando o descanso da escassa população.

 

No último degrau do edifício da Administração, dominando o largo, num vulto escuro, como um gigantesco ovo de extinto dinossauro, adivinhava-se o cipaio envolto em pesado cambriquite, que ali, à noite, o frio era a sério.

 

O cipaio ficava de noite de guarda ao edifício da autoridade! Nem o ruído nem os faróis do carro apontados para ele o acordaram! Foi necessário sacudi-lo para que, estremunhado, acordasse e nos indicasse onde havia algo que pudesse ser equiparado ou fizesse as vezes de hotel ou pensão.

 

Ali, no segundo prédio ao lado. O comerciante tinha uns quartos que alugava a quem se aventurasse àquelas longínquas paragens.

 

Também não foi fácil acordar esta gente, sem hábito de receber forasteiros a altas horas da noite! Socada várias vezes a porta, ouve-se um ronco lá no interior, depois vê-se o tremular de uma vela ou dum petromax, e logo apareceu toda a família composta de casal e duas filhas, que talvez pelo adiantado da hora e pela nossa pouca idade nos olhavam como alienígenas. Sem muitas delongas que a hora não permitia, mostraram-nos um quarto, fora de casa, com porta para a rua lateral. Dentro, lavatório com um jarro de água, uma espécie de armário, cambando sem um pé e portas de pano velho, e uma velha cama que teimava ainda por manter algumas tábuas a segurar o colchão! Poucas.

 

Uma passagem de água na cara e cabeça para retirar parte da poeira acumulada no caminho e logo estávamos deitados.

 

Depois que apagada a chama do candeeiro de petróleo e nos habituámos à escuridão, bem por cima das nossas cabeças, um buraco no teto, e lá estavam aquelas mesmas estrelas, lindas, na sua infindável conversa cintilante a dizer-nos que podíamos fechar os olhos, tranquilos, que elas velariam pelo nosso sono.

 

Era assim África.

 

Rio de Janeiro, Abril de 2010

 

 Francisco Gomes de Amorim

publicado por Henrique Salles da Fonseca às 09:41
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Março 05 2010

 

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,

Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

 Alda Lara
Alda Lara

Poetisa angolana, Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque nasceu a 9 de Junho de 1930, em Benguela.
Tendo vindo para Portugal muito nova, concluiu em Lisboa o ensino secundário. Distinguiu-se como aluna no Colégio de Paula Frassinetti da cidade de Sá da Bandeira - hoje Lubango - e no Liceu D. Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa, onde terminou o 7.º ano.
Começando por frequentar a Faculdade de Medicina de Lisboa, acabou o curso em Coimbra, onde apresentou uma tese sobre "Psiquiatria Infantil". Reconhecida no meio académico, esta tese proporcionou-lhe um convite para se especializar em Paris, para que depois ingressasse num estabelecimento psiquiátrico de Lisboa. Contudo, a sua dedicação e amor à Terra-Mãe impediu-a de responder a esta solicitação.
Irmã do escritor Ernesto Lara Filho, casou-se com o escritor Orlando de Albuquerque, também médico de profissão, e frequentou, como muitos outros seus conterrâneos, a da Casa dos Estudantes do Império (CEI), onde desenvolveu imensa actividade.
Com uma grande ligação ao mundo literário, Alda Lara era reconhecida pela sua capacidade de declamação, cuja singularidade atraiu, entre outros, os poetas africanos. Assim, fez vários recitais em Lisboa e Coimbra, transformando estes lúdicos momentos em verdadeiros veículos de divulgação da poesia negra, até então ainda muito desconhecida.
Foi colaboradora de alguns jornais e revistas, nomeadamente do Jornal de Benguela , do Jornal de Angola , do ABC e Ciência e da revista Mensagem da CEI, da responsabilidade do Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola (ANANGOLA). Nesta revista publicou, no número de Abril de 1952, o poema "Rumo", dedicado ao falecido estudante e contista moçambicano João Dias.
Integrando a Geração da Mensagem, fortemente influenciada formal e tematicamente pela corrente Modernista de 1922 e pelo Neo-Realismo português, a autora vai saciar-se nas origens do seu povo, descaracterizado por imposição da cultura colonial. Neste pretérito ancestral, metaforicamente designado por "Mãe África", a autora, assim como todos os "poetas mensageiros" vai encontrar a Alma da sua produção textual através da qual procura "despir-se" da camisa opressiva da história colonial. O drama dos contratados, a situação da mulher angolana, a repressão exercida sobre o uso das línguas nativas, o desejo de regressar, etc., são, por isso, temas recorrentes e abordados de forma avassaladora:
 
"Quando eu voltar
que se alongue sobre o mar
o meu canto ao Criador!
Porque me deu a vida e o amor,
para voltar? 
Ah! Quando eu voltar
Hão-de as acácias rubras,
a sangrar
numa verbena sem fim,
florir só para mim.
E o sol esplendoroso e quente,
o sol ardente,
há-de gritar na apoteose do poente,
o meu prazer sem lei.
A minha alegria enorme de poder
enfim dizer:
Voltei!"

Tendo sido publicada postumamente num volume de poesia e num caderno de contos pelo seu marido, Orlando de Albuquerque, a sua obra figura em diversas antologias, a saber: Antologia de poesias angolanas , Nova Lisboa, 1958; Amostra de poesia in Estudos Ultramarinos, n.º 3, Lisboa, 1959; Antologia da Terra Portuguesa - Angola, Lisboa, s/d; Poetas Angolanos , Lisboa, 1962; Poetas e Contistas Africanos , S. Paulo, 1963; Mákua 2, Antologia Poética , Sá da Bandeira, 1963; Contos Portugueses do Ultramar- Angola , 2.º volume, Porto, 1969; Livros Póstumos: Poemas , Sá da Bandeira, 1966; Tempo de Chuva , Lobito, 1973.
Com uma actividade diversificada, fez também algumas conferências, uma das quais - "Conferência sobre problemas da Assistência Médica Missionária em África" - se encontra publicada, dada a sua importância e repercussão.
Depois da sua morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira instituiu o Prémio Alda Lara para poesia.
Faleceu em Cambambe, no Kwanza-Norte, a 30 de Janeiro de 1962.
 
In Infopédia
Porto Editora, 2003-2010
Disponível em http://www.infopedia.pt/$alda-lara

 
publicado por Henrique Salles da Fonseca às 09:28
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