Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui
Para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas,
Rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
Cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir
Assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
Da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo
De secretário-geral do coral.
'As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
Minha alma tem pressa...
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
Muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos,
Não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
E para mim, basta o essencial!
Mário de Andrade
Mário Raul de Moraes Andrade, (São Paulo, 9 de Outubro de 1893 — São Paulo, 25 de Fevereiro de 1945) foi um poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo da época do movimento modernista no Brasil e produziu um grande impacto na renovação literária e artística do país, participando activamente da Semana de Arte Moderna de 22, além de se envolver (de 1934 a 37) com a cultura nacional trabalhando como Director do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo.
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