Elos Clube de Tavira

Março 11 2010

     

 
Estou a chegar de Portugal.
 
Como podem perceber, assimilei um pouco do “modo lusitano de falar”. Nós diríamos em Português “brasileiro”: “Estou chegando de Portugal”. Ou, se fosse com alguma antecedência e dentro do FEBEAPÁ (lembram-se do saudoso Estanislau Ponte Preta? Ele foi o criador do FEBEAPÁ: Festival da Besteira que assola o País!) “Vou estar chegando de Portugal”.
 
Com isso, “toco na ferida” atual mais dolorosa de nossa sofrida língua: o gerundismo!
 
― “Peraí”, “meu”, por que dolorosa? Não podia ser dolorida?
 
― Sim, poderia ser. Mas há uma diferença sutil entre cada uma dessas formas! Dolorida, é a flexão feminina do adjetivo dolorido, particípio de dolorir, cujo sentido é “Que tem dor; dorido”. Por sua vez, dolorosa é a forma feminina do também adjetivo doloroso, vocábulo oriundo do latim dolorosu e que significa “Que produz dor; dolorífico”. Portanto, o tal gerundismo está muito mais para doloroso do que para dolorido!
 
― Aham! E o que é mesmo gerundismo?
 
― É esse modismo horroroso que representa bem o nosso “processo simples de complicar as coisas” e a nossa incurável mania de repetir o que vemos ou ouvimos sem uma indagação mais cuidadosa. De tempos para cá, as expressões singelas ao estilo de eu vou chegar; ele vai falar; vocês participarão transformaram-se em esdrúxulos eu VOU ESTAR CHEGANDO; ele VAI ESTAR FALANDO; vocês VÃO ESTAR PARTICIPANDO e por aí afora!
 
― E por que aconteceu isso?
 
― Ao que tudo indica, foi devido a traduções malfeitas de scripts de telemarketing de língua inglesa. Ocorre que naquele idioma existe o chamado present continuous tense, que não temos em português. Lá eles dizem: I will be arriving, que traduziríamos apenas por eu vou chegar e não ― ao pé da letra, como o fizeram os “tradutores” ― eu VOU ESTAR CHEGANDO...
 
― Então essa construção gramatical é sempre errada, certo?
 
― Não! Quando a usarmos para nos referir a uma ação que se prolonga por determinado tempo, o emprego será correto! Se eu quiser dizer que passarei o mês de julho em viagem, a forma eu vou estar viajando em julho estará absolutamente certa!
 
― E o que Portugal tem a ver com isso?
 
― Bem, em primeiro lugar, há que se destacar que aquele país cuida melhor da pureza da língua, sendo mais refratário a esses casos de “colonialismo cultural”. Em segundo lugar, são os lusos muito parcimoniosos no uso do gerúndio. Preferem o infinitivo. Assim, em vez de usar as formas gerundiais falando, rindo, andando, estudando, viajando eles preferem as infinitivas a falar, a rir, a andar, a estudar e a viajar!
 
― Ora, nós aqui, por via de dúvidas, misturamos os dois: infinitivo do verbo estar mais gerúndio do verbo principal e pronto, fica assim: eu vou estar falando; você vai estar rindo; ele vai estar andando; nós vamos estar viajando...!!!
 
 
Voltando a Portugal, tive ocasião de proferir breve palestra na Universidade de Coimbra, no dia 22 de abril ― data do “achamento” do Brasil ― em solenidade presidida pelo Magnífico Reitor Professor Doutor Fernando Jorge Rama Seabra, ao lado do Embaixador do Brasil em Portugal, Doutor Antonio Paes de Andrade e do Presidente da Sociedade Brasileira de Heráldica e Medalhística Dom Galdino Cuchiaro. Ao comentar as diferenças existentes entre a Língua Portuguesa falada aqui e lá, lembrava a expressão atribuída a Eça de Queirós “O brasileiro é o português com açúcar”.
 
Depois, ilustrando mais, fiz remissão à primeira vinda do humorista Raul Solnado ao Brasil. Na ocasião, quem fez sua apresentação pela televisão foi o nosso Zé Vasconcelos, que disse algo assim:
 
― Tenho o prazer de apresentar a vocês um humorista muito bom, inteligente, versátil e que, além de todo seu humor, tem a graça especial do sotaque português!
 
      Falando a seguir, replicou Raul Solnado:
 
É gozado! A língua é nossa: Língua PORTUGUESA. Vocês a usam e nós é que temos o sotaque!
Raul Solnado
Raul Solnado
Nome completo Raul Augusto Almeida Solnado
Nascimento 19 de Outubro de 1929
Lisboa,  Portugal
Morte 8 de Agosto de 2009 (79 anos)
Lisboa,  Portugal
Nacionalidade Flag of Portugal.svg Portuguesa
Ocupação Humorista, apresentador televisivo e actor
 
 
De fato, uma língua comum a mais de um povo traz aspectos bastante
curiosos. Na bela viagem que fizemos pela região do Douro ― subindo
de barco e retornando por via férrea ― vimos escrito junto a uma
estação: RETRETES.
 
― O que é isso? Perguntou uma participante de nossa comitiva.
 
― Ora! Instalações sanitárias. “Quartos de banho”, respondeu nosso acompanhante português!
 
Por fim, cabe comentar o título de nossa coluna de hoje.
 
Nos cursos de Comunicação Oral e Relacionamento Socioprofissional e de Oratória Moderna, costumo pedir aos participantes que me deem a interpretação da frase: “Navegar é preciso, viver não é preciso”.
 
― A frase expressa o grande valor que os portugueses atribuíam à navegação. Para eles, ela era mais importante que a própria vida!
 
― Sendo Portugal um país de pequenas dimensões territoriais, sua expansão só poderia dar-se por meio da navegação, pela conquista de novas terras.
 
― Heróicos e aventureiros, os criadores da Escola de Sagres ― a mais avançada em navegação marítima de sua época ― entendiam que sua sina, sua vida era o mar.
 
― Camões refere-se a Portugal dizendo: “um país que a Espanha aperta e o mar alarga”. Logo, era preciso navegar para conquistar novos espaços, alargando seu território.
 
De modo geral, as interpretações seguem essa linha. Bonita e poética, sem dúvida, mas que não corresponde ao sentido exato da expressão. De fato, a marca distintiva dos bravos portugueses foi a navegação. Por intermédio dela, eles marcaram sua presença na América, na África, na Ásia e na Índia, “dando novos mundos ao mundo”, como canta seu poeta Fernando Pessoa.
 
Entretanto, o sentido prende-se à acepção primeira de PRECISAR, verbo composto por PRECISO mais sufixo AR: “Indicar com exatidão, particularizar, distinguir, especializar”.
Ora, navegar é preciso ― isto é tem exatidão ― porque se baseia em instrumentos de precisão, como bússola, sextante, cartas de marear etc. No mínimo, tem a indicação das estrelas e das constelações, o primeiro e mais singelo método de orientação dos nautas...
 
E viver? Que precisão tem? Quem pode garantir que vai viver até o fim de uma viagem? Ou mesmo até amanhã? Ou nas próximas horas? “O futuro a Deus pertence”, diz a sabedoria das ruas, expressando essa incerteza que nos atinge a todos...
 
Com as modernas parafernálias eletrônicas ― como radiogoniômetro, satélites, GPS e que tais ― navegar é cada vez mais preciso. E dentro do estresse constante em que vivemos e com a violência que açoita o mundo, viver é a cada dia menos preciso!
 
 J. B. Oliveira
     Consultor de Empresas, Professor Universitário, Advogado e Jornalista; Autor do livro “Falar  Bem é
     Bem fácil”, e membro da Academia Cristã de Letras.
              jboliveira@jbo.com.brwww.jboliveira.com.br
 

 

publicado por Henrique Salles da Fonseca às 09:33

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